Aguardando o colapso do sistema político
Jair Bolsonaro encarna o autoritarismo político. Mas pode vir a ser um Presidente débil, sob a tutela do Poder Judicial e das Forças Armadas.
Haverá uma segunda volta nas presidenciais brasileiras. O ex-capitão Jair Bolsonaro dispõe de uma larga vantagem mas três semanas de campanha é muito tempo. Os termos do debate vão mudar. Limitamo-nos a três notas de enquadramento, sobre Bolsonaro, o “cisne negro” da campanha eleitoral, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o impacto destas eleições sobre o sistema político brasileiro.
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Haverá uma segunda volta nas presidenciais brasileiras. O ex-capitão Jair Bolsonaro dispõe de uma larga vantagem mas três semanas de campanha é muito tempo. Os termos do debate vão mudar. Limitamo-nos a três notas de enquadramento, sobre Bolsonaro, o “cisne negro” da campanha eleitoral, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o impacto destas eleições sobre o sistema político brasileiro.
O ex-capitão tornou-se num fenómeno eleitoral, com uma irresistível dinâmica nos últimos dias. “De todos os candidatos competitivos, ele foi o único a registar uma alta consistente em todos os segmentos do eleitorado, em especial nos tradicionais redutos do lulismo. Conseguiu com isso estancar o movimento de ascensão do petista Fernando Haddad”, resumiu o jornalista Helio Gurovitz. Mas não foi suficiente para vencer na primeira volta.
Se é um fenómeno, “ele tem raízes na sociedade brasileira. Há elementos que não apenas aderiram mas produziram o seu ‘mito’”, sublinha o politólogo Carlos Melo. “O ‘mito’ sustenta-se numa visão crítica, radical e sectária, que reage a um sistema político que, convenhamos, colapsou.”
A socióloga Esther Solano estudou durante meses as motivações dos seus eleitores. “Alguns que [antes] escolheram Lula, por ser um nome anti-sistema, votam hoje em Bolsonaro pelo mesmo motivo.” Ele surge com a imagem “do político honesto” em contraponto com “a classe política corrupta”. “Compraram a ideia de que o PT é o partido mais corrupto do Brasil.”
A sua retórica do “bandido bom é bandido morto” encontra eco em vastas camadas que se consideram reféns da violência, “enquanto o criminoso está superprotegido pelo Estado”. A Bolsa Família e as quotas universitárias são interpretadas como incentivo à preguiça e a parasitar o Estado. Os movimentos identitários — negro, feminista ou LGBT — produzem o “caos social” e desestruturam a família tradicional.
Os jovens identificam Bolsonaro como rebelde. “Se nos anos 70 ser rebelde era ser de esquerda, agora, para muitos desses jovens, é votar nesta nova direita, que se apresenta de uma forma cool, disfarçando o seu discurso de ódio sob a forma de memes e vídeos divertidos.”
Assinala Solana que “vivemos um momento de ascensão da extrema-direita no mundo e de frustração generalizada com a política”. Mas o caso brasileiro tem uma particularidade: “A extrema-direita não se construiu na retórica do inimigo externo”, como na Europa e nos Estados Unidos. “A ideia é que a ameaça vem de dentro: o jovem negro, o político de esquerda, o académico, a feminista.”
O Brasil progressista ignorou o que fermentava no fundo da sociedade.
A resiliência do PT
Haddad conseguiu os “mínimos” ao forçar a segunda volta. Paradoxalmente, uma eventual derrota será um tremendo choque mas não será uma catástrofe para o PT. O partido de Lula continua a ser o único partido brasileiro dotado de uma forte identidade. Um inquérito do instituto Datafolha, feito em Agosto, indica que o PT é o que reúne a maior simpatia dos brasileiros — 24%. Todos os outros grandes partidos, do Movimento Democrático Brasileiro (MBD) ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), não suscitam a identificação de mais de 4 ou 7% dos cidadãos — são apenas destinatários dos votos.
Note-se que o PT deu um grande contributo para a polarização política que ameaça transformar-se em boomerang. Usou com eficácia, nas suas vitórias eleitorais, a estratégia do “nós contra eles”. Agora, escreve André Singer, um cientista político que foi porta-voz de Lula, parece que se estabeleceu um consenso: “O lulismo não pode ganhar eleições e, se as ganhar, não pode governar o Brasil.” O lulismo parece ser um fenómeno enraizado e de longa duração como foi outrora o getulismo, reconhece Singer.
Concluía Helio Gurovitz antes de Lula ter sido impedido de concorrer: “O candidato petista que vier substitui-lo poderá ganhar ou perder a eleição. Pouco importa. Enquanto a polarização em torno do partido prevalecer no sentimento do eleitor, o vitorioso só poderá ser o próprio PT.” Se perder, será o líder da oposição.
A crise institucional
Desta vez não se denuncia a “miséria” do sistema partidário brasileiro. Anuncia-se o seu colapso. Bolsonaro é o mais patente sintoma. O centro político — centro-esquerda e centro-direita — deixou de existir, o que anulou qualquer alternativa à competição entre os extremos do leque partidário. Se somarmos as taxas de rejeição dos dois candidatos, a força que domina a política é o “bloco dos anti”.
Entretanto, duas instituições dão sinais de querem assumir a tutela da política e dos políticos. O Supremo Tribunal Federal já começara a exercer esse papel. Agora, o seu presidente parece aliar-se aos generais.
Os golpes estão fora de moda. Há formas mais “institucionais” de autoritarismo e controlo social.