Os sonâmbulos do Brasil
Uns falam em risco de golpe, outros exaltam ou absolvem a ditadura militar. Mas, segundo uma sondagem do instituto Datafolha, para 69% dos brasileiros, “o regime democrático é a melhor forma de governo do país”. Entretanto, o sistema judicial substituiu os militares como força tutelar do país.
O Brasil volta a ser um susto. A ditadura militar acabou em 1985. A Constituição “cidadã” foi aprovada em 1988. Desde então, o Brasil viveu três décadas de democracia, a mais longa fase democrática da sua História. Está entre as dez maiores economias do mundo.Os mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva mudaram e modernizaram a sociedade.
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O Brasil volta a ser um susto. A ditadura militar acabou em 1985. A Constituição “cidadã” foi aprovada em 1988. Desde então, o Brasil viveu três décadas de democracia, a mais longa fase democrática da sua História. Está entre as dez maiores economias do mundo.Os mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva mudaram e modernizaram a sociedade.
A destituição de Dilma Rousseff, em 2016, e as presidenciais de 2018 abriram um período de extrema polarização. As eleições presidenciais serão um duelo entre os dois candidatos mais rejeitados pelos eleitores, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), e Jair Bolsonaro, do pequeno Partido Social Liberal (PSL). Ninguém viu chegar o ex-capitão Bolsonaro. E, subitamente, começa a discutir-se o golpe militar de 1964.
Se o PT é demonizado por metade da sociedade, e não fez autocrítica sobre a corrupção, o seu monopólio da virtude ou o desígnio de hegemonia política, Bolsonaro surge como um espectro sobre o sistema democrático: propõe uma presidência autoritária e exalta os valores da ditadura militar. Este discurso de extrema-direita está a exacerbar as pulsões autoritárias bem vivas na sociedade. Nos últimos dias, Bolsonaro tornou-se no candidato do establishment. Aguardemos os efeitos.
Faça-se desde já uma advertência: uma sondagem do Datafolha, publicada na sexta-feira, indica que, para 69% dos brasileiros, “o regime democrático é a melhor forma de governo do país”. É, diz o instituto, o melhor resultado desde 1989.
Os militares na política
O facto de se começar a falar em golpes militares obriga a uma breve visita à tumultuosa história política brasileira do século XX. Foi marcada por sucessivas intervenções militares, tendo como pano de fundo os conflitos entre oligarquias rurais ou a vontade de liquidar o poder dessas mesmas oligarquias, como foi o caso da “Revolução de 1930”, que levou Getúlio Vargas ao poder. O getulismo lança uma política económica nacional-desenvolvimentista e impõe um Estado centralizador. Governa constitucionalmente até 1937 e depois em ditadura — o Estado Novo — até 1945. No fim da guerra, os militares forçam Getúlio a abdicar. Mas ele regressa em 1950, vencendo as presidenciais. Em 1954, num cenário de grande tensão, o Exército faz um ultimato a Vargas: ele suicida-se. Um dos seus herdeiros políticos, Juscelino Kubitschek, vence as presidenciais de 1954, mas um sector militar quer impedir a sua posse. Desta vez, o comandante do exército, general Teixeira Lott, põe as tropas na rua para defender a Constituição. Em 1961, Jânio Quadros, um populista excêntrico e candidato da direita, ganha as eleições prometendo varrer a corrupção. Errático e isolado no Congresso, demite-se.
O vice-presidente era João Goulart, líder trabalhista e herdeiro de esquerda de Getúlio. A maioria do Congresso e os militares opõem-se à sua investidura. O conflito acaba num compromisso: uma revisão constitucional reduz os poderes do Presidente e reforça os do Congresso.
Abre-se uma conjuntura de alta tensão. Goulart decide apoiar-se na mobilização popular em torno das “reformas de base”, a começar pela reforma agrária. Há uma radicalização da esquerda e da direita, que responde nas ruas, mobilizando as classes médias e invocando a ameaça comunista. Goulart era popular e confiava na lealdade do exército. Não viu o golpe chegar.
O desfecho é a sublevação militar de 31 de Março de 1964, logo seguida do “golpe institucional”: no dia 11 de Abril, o Congresso elege Presidente o marechal Castelo Branco, o organizador da sublevação.
Analogias
Há analogias entre 1964 e 2018. O golpe de 1964 não foi exclusivamente militar. Foi civil e militar, contando com a mobilização dos partidos de direita, do mundo empresarial, das classes médias e, inclusive, de parte das populares. Em 2016, foi maioritariamente a classe média quem se revoltou contra o PT e o governo de Dilma, com o apoio das elites patronais e dos políticos conservadores. O anticomunismo de 1964 teria sido substituído pelo antipetismo.
Alguns militares começam a pronunciar-se sobre temas políticos. Bolsonaro elogia a ditadura militar. E o juiz Dias Toffoli, actual presidente do Supremo Tribunal Federal, defende que, em vez de se falar no golpe militar, se fale no “movimento de 1964”. É a absolvição do golpe.
Podemos somar analogias. Mas a diferença de época é crucial. Em 1962, o Brasil tinha seis milhões de eleitores e a sociedade civil estava escassamente organizada. Hoje tem 115 milhões de eleitores e “está coalhado de organizações sociais”. O país maioritariamente rural deu lugar a um país urbano.
O golpe de 1964 só é concebível no mundo da Guerra Fria. Os EUA incentivaram os militares e a direita. Hoje, um golpe militar é praticamente impossível. O exército perdeu o papel de força tutelar. Este está a passar para o poder judicial. Perante o desprestígio das instituições políticas, o Supremo assumiu o papel de árbitro institucional. “É o STF que define os rumos do país”, resume o historiador José Octávio Nogueira.
Hoje não há apelo à intervenção militar. O mundo mudou. Um golpe isolaria o Brasil internacionalmente e desestabilizaria a América Latina. É a última coisa que a elite empresarial e a classe média desejam.
O economista Jim O’Neill, director da Chatham House, de Londres, e bom conhecedor do Brasil, chama a atenção para outra dimensão da frustração político-social. “Trata-se de um momento Trump. Lula foi tão bem sucedido, após [Fernando Henrique] Cardoso, que as aspirações e as crenças dos brasileiros mudaram. O que veio depois de Lula foi um grande choque para os brasileiros que passaram a ter maiores aspirações.” A recessão de 2016 agravou essa frustração.
A cegueira
É bem conhecido o pântano político brasileiro. Mas o mais chocante na campanha foram a cegueira e o oportunismo com que partidos e candidatos exploraram a polarização e o antipetismo. A promoção de Bolsonaro de deputado marginal a candidato favorito é em grande medida produto dessa cegueira. Uns fizeram do antipetismo a rampa de lançamentos do ex-capitão. Outros promoveram o PT ao estatuto de alternativa única à extrema-direita. Levaram à fragmentação e à anulação de uma alternativa à polarização. Todos — de Lula a Ciro Gomes, de Geraldo Alckmin a Marina Silva, sem falar nos marginais — alimentaram a engrenagem que os devorou. Será uma análise central para o balanço destas eleições.
Não resisto a citar o historiador Christopher Clark, que publicou em 2012 um livro intitulado The Sleepwalkers — How Europe Went to War in 1914. O título explica-se em poucas palavras: “Os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, aparentemente vigis mas incapazes de ver, atormentados pelos seus pesadelos mas cegos perante a realidade do horror que estavam prestes a lançar no mundo.”
Os sonâmbulos de hoje serão os políticos brasileiros.