O direito a habitar a cidade
As cidades portuguesas estão mais bonitas, funcionais e seguras, mas os cidadãos não têm acesso a elas, a não ser quando também vestem a “pele” de turistas.
O título do livro de Henri Lefebvre, Le droit à la ville (O direito à cidade), publicado há 50 anos, é hoje uma das frases mais citadas, ainda que nem sempre seja referido o seu autor. De facto, o direito à cidade, tal como o direito à habitação, tornou-se slogan de uma contestação permanente ao rumo que tomam as nossas cidades. Trata-se de uma reação generalizada ao facto de as políticas públicas e as estratégias económicas deslocarem para a periferia a habitação, a escola, o hospital, o comércio ou os serviços públicos. Lefebvre publica o seu livro em pleno movimento estudantil do Maio de 1968, onde esta questão é ainda ampliada pela crítica ao próprio modelo social, que limitava o acesso dos cidadãos ao espaço público, condicionando os seus direitos fundamentais.
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O título do livro de Henri Lefebvre, Le droit à la ville (O direito à cidade), publicado há 50 anos, é hoje uma das frases mais citadas, ainda que nem sempre seja referido o seu autor. De facto, o direito à cidade, tal como o direito à habitação, tornou-se slogan de uma contestação permanente ao rumo que tomam as nossas cidades. Trata-se de uma reação generalizada ao facto de as políticas públicas e as estratégias económicas deslocarem para a periferia a habitação, a escola, o hospital, o comércio ou os serviços públicos. Lefebvre publica o seu livro em pleno movimento estudantil do Maio de 1968, onde esta questão é ainda ampliada pela crítica ao próprio modelo social, que limitava o acesso dos cidadãos ao espaço público, condicionando os seus direitos fundamentais.
Hoje, o debate público e político está centrado no problema da habitação, que tem consequências diretas na vida urbana. Com efeito, a habitação que construiu as nossas cidades nos últimos séculos sofreu, primeiro, um processo de abandono no início da década de 1980, com a expansão urbana descontrolada e, mais recentemente, um processo de reabilitação, não para alojar os seus cidadãos, mas para acolher os turistas que para aí se deslocam diariamente.
Ainda que se possa argumentar que foram as pessoas que, de algum modo, abandonaram os centros das cidades portuguesas, também sabemos que o regresso ao centro só foi possível com um conjunto de investimento público que valorizou os espaços públicos e a mobilidade urbana, criando condições para a posterior reabilitação dos edifícios. Apesar do debate intenso promovido pela comunidade científica, a administração pública local e nacional não equacionou as consequências de uma aposta exclusiva no sector turístico e imobiliário, permitindo a gentrificação dos centros urbanos. As cidades portuguesas estão mais bonitas, funcionais e seguras, mas os cidadãos não têm acesso a elas, a não ser quando também vestem a “pele” de turistas.
Coloca-se assim a questão: que caminhos para inverter este panorama? Por um lado, torna-se urgente implementar um conjunto de políticas públicas que regulem o processo de reabilitação não só dos centros, como também das periferias, como já referimos em artigo anterior. Por outro lado, é igualmente fundamental a reflexão em torno da habitação e da cidade para que se construam outras formas de resolver estes problemas.
A “Nova Geração de Políticas de Habitação” lançada em Abril, pela secretária de Estado Ana Pinho, e a “Lei de Bases da Habitação”, promovida pela deputada Helena Roseta, propõem-se inverter este cenário, a primeira a curto prazo e a segunda a longo prazo. São iniciativas necessárias de regulação do espaço urbano, com o objetivo de encontrar modelos de compromisso que permitam a vivência mais inclusiva das nossas cidades, favorecendo a habitação social e o arrendamento a baixo custo.
Para garantir o direito à vida urbana, estas estratégias deveriam também ser alargadas a outros ministérios que regulam os equipamentos públicos, de modo a garantir espaços públicos, serviços de saúde e espaços de educação mais próximos dos cidadãos que pretendem habitar os centros.
Interessa também discutir qual o modelo habitacional, ou seja, que casas pretendem os cidadãos que habitam as nossas cidades, considerando a diversidade cultural e social que hoje constitui a sociedade portuguesa. A casa acolhe hoje outros modelos de família e múltiplas formas de habitar que interessa problematizar para que todos e todas se revejam nos espaços que habitam, sem se confrontarem com modelos estereotipados que povoam os nossos prédios e moradias de promoção pública e privada.
A exposição Retrato(s) da minha Casa, organizada pelo Círculo de Artes Plásticas e pelo Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, é um contributo para discutir os modelos que atravessam o imaginário dos arquitetos e dos artistas, através dos seus projetos, das suas referências culturais ou das suas memórias. Também em Coimbra, por iniciativa da mesma escola de arquitetura, do Centro de Estudos Sociais e da organização internacional IASTE, reúnem-se, desde ontem, investigadores e investigadoras de todo o mundo para discutir o tema The Politics of Tradition, ou seja, o modo como a política dialoga com a tradição na construção do ambiente edificado, usando-a muitas vezes para legitimar as suas propostas de governança profundamente conservadoras ou até anti sociais. A tradição é, no seu sentido mais amplo, um instrumento fundamental para questionar os paradigmas vigentes e propor soluções progressistas, integrando por exemplo as perspetivas mais inclusivas e humanistas.
Em certo sentido, é isto que está em causa quando procuramos inverter as políticas que usaram a reabilitação urbana e arquitetónica para “vender” as nossas tradições e a nossa história aos turistas de todo o mundo, sem questionarem se esse caminho poderia comprometer os valores fundamentais da cultura e da cidade portuguesa.
Retomando o referido livro, concluímos que “O direito à cidade, isto é, à vida urbana, (é) condição de um humanismo e de uma democracia renovados”, ao qual acrescentamos, e de uma arquitetura reinventada.