#MeToo em Portugal? Temos “uma forma mais formiguinha” de fazer a luta

Diferenças culturais ajudam a explicar impacto diferente do movimento #MeToo no debate sobre assédio e violência sexual.

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26 de Setembro de 2018: manifestação no Porto contra a decisão dos juízes sobre um caso de violação Paulo Pimenta

Um ano depois da explosão do movimento #MeToo nos Estados Unidos, que sinais de contágio conseguimos ver em Portugal? “Teve relevância e uma grande visibilidade praticamente no mundo inteiro, influenciou a forma como se fala nesses assuntos”, pondera Nora Kiss, presidente da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. Mas contrapõe que, em Portugal, o efeito não foi tão visível como em outros países.

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Um ano depois da explosão do movimento #MeToo nos Estados Unidos, que sinais de contágio conseguimos ver em Portugal? “Teve relevância e uma grande visibilidade praticamente no mundo inteiro, influenciou a forma como se fala nesses assuntos”, pondera Nora Kiss, presidente da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. Mas contrapõe que, em Portugal, o efeito não foi tão visível como em outros países.

Não é que a luta nas ruas contra o assédio e a violência sexual tenha estado adormecida. Nos últimos anos, além das concentrações habituais nos dias simbólicos de luta pelos direitos das mulheres, houve várias demonstrações de solidariedade com mulheres que foram vítimas: não apenas as de Outubro do ano passado e de Setembro deste ano, contra acórdãos da Relação do Porto, mas também em Junho de 2016, quando foi conhecido o caso de uma adolescente brasileira vítima de uma violação colectiva, ou mesmo quando Portugal se juntou, em 2011, à Slutwalk, a Marcha das Galdérias, nascida no Canadá.

Apesar de o MeToo ter colocado em agenda o debate sobre o assédio e a violência sexual, que dominou noticiários em todo o mundo, a dimensão da denúncia dos crimes pode não ter sido apropriada da mesma forma em Portugal. A começar porque, por cá — mesmo em questões como a violência doméstica, onde o reconhecimento do problema é generalizado —, é raro as vítimas virem a público, diz-nos Maria José Magalhães, investigadora da Universidade do Porto. “Falar na sua própria voz não é muito o hábito em Portugal”. A investigadora, que é também dirigente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), aponta como decisiva a tradição dos EUA de trazer os problemas a público e criar grupos de resistência. Considera difícil que um movimento com os contornos do MeToo ganhe força em Portugal, o que se nota logo no facto de haver poucas activistas que gostem de falar publicamente sobre as causas que defendem. “Há muitas mulheres que não gostam da exposição pública, mesmo que não sejam vítimas”.

E nas redes sociais? Uma hashtag pode fazer a diferença? Ao analisar discursos sobre feminicídio no Twitter em Portugal e Espanha, Inês Amaral, docente da Universidade de Coimbra, notou que há “muito mais solidariedade do que partilha de informação, menos conversação e mais partilha de conteúdo”. A adesão não é apenas a hashtags em inglês, “a língua franca da Internet”, mas volta-se também para as que criam pontes com as lutas em Espanha e na América Latina, onde os contornos da violência contra as mulheres têm semelhanças culturais. #NiUnaMenos, #JustiçaPatriarcal, #ViolênciaMachista, #LaManadaSomosNosotras e #YoTeCreo — são slogans de indignação que se lêem nos cartazes tanto das gigantescas manifestações espanholas ou argentinas como nas portuguesas de pequena dimensão. Porque, sim, “no online a mobilização é muito maior do que no offline”, aponta Inês Amaral, sustentando que em Portugal “os colectivos que vão para a rua são mais politizados, e isso ainda afasta algumas pessoas.”

Questão geracional?

Em Portugal, ainda há muito a fazer para garantir os direitos das vítimas - como se torna claro nas situações como o recente acórdão da Relação do Porto que levantou protestos nas ruas - mas o combate à violência sexual não tem sido esquecido pelo Estado. Esta semana, soube-se que o Ministério da Justiça quer seguir as recomendações da Convenção de Istambul e vai propor alterações ao Código Penal no que toca aos crimes sexuais. Nos últimos três anos, Portugal viu criados três centros de atendimento para vítimas de violência sexual. Para além do trabalho das ONG, está em curso um projecto com profissionais da administração pública que lidam com vítimas, com o objectivo de conhecer as percepções sobre violência sexual nas relações de intimidade e sensibilizar sobre os estereótipos que prejudicam uma correcta avaliação dos casos.

A luta no terreno contra a violência sexual é mais antiga nos Estados Unidos do que em Portugal, o que justifica que a partilha de histórias através da hashtag #MeToo tenha começado muito antes da adesão de celebridades. E este trabalho sustentado também ajudou a definir exemplos sobre como responder a estas situações. Mas isto nem sempre é fácil de traduzir para a cultura de outros países.

Com a polémica à volta de Cristiano Ronaldo, o debate chegou mais perto de Portugal. Ainda há cautela a tratar do assunto, mas já muitas pessoas se levantam para pôr a culpa na mulher que acusa o jogador de futebol. “Temos a obrigação de esperar pelos resultados do tribunal, esperar para saber o que é provado ou não, mas não temos o direito de culpar as vítimas”, sublinha Maria José Magalhães, falando no contexto de cultura misógina “que tem mantido o silenciamento das vítimas”. “Continuamos a culpabilizar as vítimas porque não queremos que os nossos ídolos masculinos saiam desse pedestal”.

O caminho do reconhecimento da violência sexual em Portugal ainda pode ser demorado, mas a dirigente da UMAR nota um factor positivo: “quando uma coisa está estabelecida, não há volta atrás”. É o caso, por exemplo, do combate à violência doméstica. “As pessoas constroem novas relações, novas práticas sociais, mesmo no quotidiano. Apesar de não termos esse boom mediático, temos uma forma mais formiguinha, passinho a passinho, cimentar o terreno. É essa a nossa luta.”

Maria José Magalhães aponta que nas escolas, por exemplo, é cada vez mais claro para os jovens o que é o assédio sexual. Coordena desde 2016 o projecto projecto Bystanders, que tem analisado formas de responder ao assédio sexual entre jovens através da intervenção dos chamados bystanders, os observadores. Os resultados do projecto serão apresentados a 8 e 9 de Outubro, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, no seminário internacional Assédio e Violência Sexual: vítimas, perpetradores e bystanders. Com base no trabalho desenvolvido em três escolas, a investigadora nota que os jovens estão mais abertos a aprender, mas “com pessoas adultas a possibilidade de avançar no debate é mais difícil, as opiniões estão muito firmemente vincadas no seu consciente”.

Para Nora Kiss, “a questão geracional é um factor relevante, mas não é o único”. Para quem trabalha na área da violência, diz, é mais claro “onde acaba um flirt, onde começa o assédio”, mas as percepções subjectivas ainda diferem, fruto da socialização de cada pessoa, mesmo entre as jovens. Recorda, por exemplo, os resultados de um estudo recentemente divulgado feito com voluntárias que participaram em projectos de Serviço Voluntário Europeu, no qual uma jovem relatou um caso de assédio que sofreu no projecto dela. Outra jovem, que participou no mesmo projecto e passou por situações semelhantes, não teve a mesma leitura, desvalorizando o caso. “Nem todas as pessoas jovens têm uma abordagem feminista sobre este assunto”.

No que toca ao assédio sexual no local de trabalho, tem havido vitórias, nomeadamente a nível legislativo. O país tem vindo a evoluir na discussão sobre o assunto. Para a socióloga Anália Torres, que ouviu vários homens e mulheres ao longo do estudo Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal, apesar de as “linhas vermelhas” serem diferentes de pessoa para pessoa, existem fronteiras mais claras entre o que é assédio e o que é sedução. “As pessoas sabem distinguir isso [flirt] do que é perseguição”, diz a investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG).

Falar sobre o assédio sob a perspectiva de género é hoje mais fácil, mas também este foi um processo longo. “Se eu olhar para os últimos oito ou nove anos, quando íamos a uma escola fazer uma sessão sobre igualdade, havia menos conhecimento sobre o assunto. Hoje temos muito menos resistências”, relata Nora Kiss, da Rede. As resistências podem vir a cair cada vez mais à medida que forem reforçados programas nas escolas, como a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, que engloba temas como a igualdade de género.

Voltando às escolas estudadas no projecto Bystanders, há algumas arestas a limar: as raparigas, por exemplo, já têm mais consciência de que são vítimas e repudiam o assédio sexual de uma forma geral, em particular quando acontece dentro do seu círculo de amigos. Contudo, os casos são menos reconhecidos quando acontece a outras, que elas não conhecem. Ainda é possível ouvir o discurso de que “as outras provocam”, diz Maria José Magalhães, da FPCEUP, que explica tratar-se de um mecanismo chamado othering, de considerar que “as outras são diferentes de nós”. “Há ainda que fazer este processo em Portugal, desenvolver solidariedade entre mulheres, aquilo que nos activismos chamamos de sororidade”.