Bolsonaro, nostalgia e ideologia
No discurso de Bolsonaro, o mito do bom selvagem de Rousseau é transformado no mito do bom colonizador. Não é por acaso que o seu lema é, precisamente, o mesmo de Salazar, “Deus, Pátria, Família”.
Existe um consenso teórico entre quem estuda a nostalgia como produto psicológico e sociológico o qual postula que para que esta se expresse é necessária a ação degradadora do tempo, uma ação capaz de produzir esquecimento. Sem esquecimento não existe nostalgia. É por isso que Mascarenhas Barreto escreveu que “chega gente a ter saudades das horas más que passou”. Ora, por essa razão, a nostalgia é uma aspiração, não raras vezes, por um lugar que não existe ou por uma imagem idílica de um passado cristalizado na lembrança, uma lembrança que é individualmente tecida, mas socialmente instituída, porque a nostalgia necessita de correspondência com os demais sujeitos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Existe um consenso teórico entre quem estuda a nostalgia como produto psicológico e sociológico o qual postula que para que esta se expresse é necessária a ação degradadora do tempo, uma ação capaz de produzir esquecimento. Sem esquecimento não existe nostalgia. É por isso que Mascarenhas Barreto escreveu que “chega gente a ter saudades das horas más que passou”. Ora, por essa razão, a nostalgia é uma aspiração, não raras vezes, por um lugar que não existe ou por uma imagem idílica de um passado cristalizado na lembrança, uma lembrança que é individualmente tecida, mas socialmente instituída, porque a nostalgia necessita de correspondência com os demais sujeitos.
Mas o que tem isto a ver com as eleições presidenciais brasileiras deste mês? Tudo. Porque afastado judicial e politicamente Lula da Silva, Jair Bolsonaro aparece como o mais provável próximo Presidente da República brasileira e, provavelmente, o último desta era democrática, uma vez que é seu sonho instaurar um governo de feição ditatorial-militar. Ora, o programa ideológico de Bolsonaro assenta em premissas nostálgicas, porque idealiza todo o passado colonial brasileiro e responsabiliza os negros pela escravatura – chegou a afirmar que os comerciantes de escravos nem colocaram os pés em África, que foram os negros que se ofereceram para serem escravos –, retirando a mácula da ação portuguesa e mais tarde da coroa brasileira. Portanto, no discurso de Bolsonaro, o mito do bom selvagem de Rousseau é transformado no mito do bom colonizador. Não é por acaso que o seu lema é, precisamente, o mesmo de Salazar, “Deus, Pátria, Família”.
O que Bolsonaro promete aos seus eleitores é a restauração da "ordem" e do "progresso", que são os lemas da bandeira brasileira, que o candidato da extrema-direita considera ter sido cumprido – parcialmente, pois já afirmou que o número de mortes não foi suficiente – durante o período da Ditadura Militar. Essa promessa de forte feição religiosa, próxima à instauração do reino de Deus na terra – não é por acaso que a larga maioria dos evangélicos apoiam Bolsonaro e não os candidatos declaradamente evangélicos (recorde-se que Bolsonaro é católico) –, é maniqueísta, opondo o bem, representado nas elites históricas brasileiras, ao mal, representado nos pobres. Jair Bolsonaro não leva em consideração os fatores históricos ligados à escravatura e ao pós-abolição para entender a formação de uma classe pobre e negra, e das favelas, não considera a forma como os privilégios sociais foram sendo encerrados nas mãos das mesmas famílias e zonas urbanas, i.e., dos brancos, católicos e de classe média/alta. No seu discurso, crime, pobreza, negritude e preguiça estão ligados de forma determinante. Pior, eles surgem como uma opção e jamais como produto de uma sociedade esventrada pelo fosso entre brancos-ricos e negros-pobres.
Num país cansado de corrupção, onde os avanços sociais do PT foram secundarizados pelos escândalos, onde a imprensa alinhada com os golpistas que arquitetaram a destituição de Dilma Rousseff filtra a informação e a forma como esta chega, onde as classes sociais detentoras do capital financeiro permanecem arreigadas a uma ideologia de um país esquadrinhado entre a Casa Grande e a Senzala, Bolsonaro e os seus aliados têm sabido cavalgar a onda. Eles sabem que o brasileiro de classe média se revê nesse discurso de ódio racializado. O facto de Bolsonaro não ter outro discurso que não o ódio, de não apresentar qualquer programa de governo, não é relevante. Os factos não são relevantes. O importante, neste contexto, é o clima de histeria em torno de um candidato que promete ódio. Que prega sobre a defesa dos valores da família tradicional, mas que vai no terceiro casamento, e que tem um filho ilegítimo, ou que ameaçou de morte uma das esposas. Ou, por exemplo, que defende o combate à corrupção, mas que esteve envolvido num esquema de subornos. Em nada adianta mencionar que Bolsonaro se orgulha de gastar o erário público com viagens e uma vida de luxo. Não adianta mencionar que numa carreira política de quase 30 anos, as únicas propostas de lei que votou a favor foram as que beneficiavam os deputados, como aumentos de salários e verbas para despesas. Para a saúde ou educação o seu voto foi sempre negativo.
Neste cenário, a tentativa de homicídio de que foi vítima serviu para reforçar o seu lugar como salvador, como messias. O messianismo expresso em Bolsonaro, é fortemente apoiado pelo eleitorado conservador-religioso, ao apresentar linhas ideológicas sedutoras a quem imagina um Brasil muito distante do país miscigenado, multicultural e multiétnico, para revitalizar a utopia do país dos salões nobres, das fazendas, que levou ao incentivo massivo de imigração europeia, no intento máximo de "branqueamento social". É por isso que o discurso do armamento popular, do “bandido bom é bandido morto”, do genocídio de jovens negros, de esterilização dos pobres, de combate à homossexualidade, à diversidade religiosa e de subalternização do papel da mulher, se tornou tão apelativo numa população que vive com medo de sair às ruas. A promessa de matar todos os pobres, criminosos e potenciais criminosos, promessa tão perigosa quanto devastadora, tem seduzido milhões de pessoas. Curiosamente, no segundo país do mundo onde a população vive mais alheada da realidade. Não é estranhar que em favor da ideologia de extrema-direita de Bolsonaro, se tenha propagado no Brasil o mito de que o nazismo alemão teria sido de extrema-esquerda, colando-o ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Compreende-se que as repercussões da eleição de Bolsonaro no mapa social brasileiro serão tremendas. Como ele fez questão de anunciar, os índios serão expropriados das suas terras. O massacre de jovens negros agudizar-se-á. A intolerância religiosa, que já possui forte feição de guerra santa, terá maior cobertura política. A cultura de estupro e impunidade que rasga o Brasil será cada vez maior. O país do ocidente que mais membros da comunidade LGBT mata terá um programa ideológico que o fundamenta.
Como português, preocupa-me que num país ocidental e com uma população teoricamente informada como a nossa, existam tantos portugueses que simpatizam com o discurso de Bolsonaro, um discurso que, repita-se, é misógino, racista, anti-LGBT, fascista, apoiante da ditadura militar, anti-liberdade religiosa, que propõe como solução para a pobreza a castração dos pobres.