Gamcheon, o gueto que a arte ressuscitou
Foi há pouco menos de uma década que a ideia de reconverter o espaço num local de interesse público surgiu. E foi, através da arte, que a ideia se materializou.
A origem de Gamcheon está envolta em incertezas e improbabilidades. Se por um lado há quem atribua os seus primórdios a cultos religiosos, por outro lado a já por vezes definida como “Santorini da Coreia” é reconhecida como um refúgio dos sobreviventes da guerra que abalou a península em meados do século passado. Qualquer que seja a versão mais fidedigna, é inegável que foi partindo de fundações humildes que a colina que se ergue sob Busan foi conquistando o seu espaço no panorama da segunda maior cidade sul-coreana.
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A origem de Gamcheon está envolta em incertezas e improbabilidades. Se por um lado há quem atribua os seus primórdios a cultos religiosos, por outro lado a já por vezes definida como “Santorini da Coreia” é reconhecida como um refúgio dos sobreviventes da guerra que abalou a península em meados do século passado. Qualquer que seja a versão mais fidedigna, é inegável que foi partindo de fundações humildes que a colina que se ergue sob Busan foi conquistando o seu espaço no panorama da segunda maior cidade sul-coreana.
Os dias de Verão já se aproximavam do fim, o que acarretava a responsabilidade de levarem consigo os tufões e tempestades próprias da estação. Mas Busan reservava-nos uma surpresa. Gamcheon constava no plano do meu dia de visita ao mercado de Jagalchi, o mais famoso de Busan, que, simultaneamente, se descreve como o “maior mercado de peixe e marisco da Coreia do Sul”. Das caóticas ruelas que desenham os caminhos do mercado, vê-se, por vezes, a colina que acolhe a, outrora, “aldeia de refugiados”, hoje convertida em “aldeia cultural”.
À medida que ia começando a virar costas a Jagalchi, o céu pintava-se de tonalidades carregadas e muito pouco animadoras. Entre a agitação das compras dos tradicionais polvos vivos e marisco de proporções jamais imaginadas, a chuva, nada tímida, prometia vir para ficar. As jagalchi ajumma — nome pelo qual se designam a maioria das vendedoras do mercado — esboçavam inibidos sorrisos, protegidas pelos toldos velhos e esburacados, perante “turistas em fuga”. Assim, Gamcheon ficaria, inevitavelmente, reprogramada para o dia seguinte e a agitação, os cheiros e as texturas do mercado encarregar-se-iam de fazer as delícias do dia, sempre com a encoberta colina no limiar do horizonte.
De manhã, o sol coloria o céu de azul, a colina pintava-se de verde e a multiplicidade de cores dos edifícios do antigo gueto espelhavam-se nos diferentes patamares da encosta que guarda, a seus pés, Busan. O percurso é sinuoso e penoso, já que é imperativo subir a colina, a pé para os mais aventureiros, ou de autocarro para os mais relaxados. As combinações artísticas vão-se sucedendo ao longo da estrada. Casas de cores berrantes aliadas a pinturas de rua excepcionais — perdoem-me, mas chamá-las graffiti não se adequa – precedem o clímax da entrada convencional da Gamcheon Culture Village.
O espaço é, ainda nos dias que correm, maioritariamente habitado por inúmeras famílias cujas vidas assistem à contínua reabilitação de um dos pontos mais especiais da cidade. Por esta razão, são frequentes os avisos para que se respeitem os direitos dos moradores, apelando ao silêncio dos que apenas estão de passagem. Subsequentemente, o frenesim turístico próprio dos locais, tradicionalmente, sobrelotados e que já nos vai acostumando em diversas cidades europeias, disfarça-se pelos becos, subidas e descidas da aldeia.
Foi há pouco menos de uma década que a ideia de reconverter o espaço num local de interesse público surgiu. E foi, através da arte, que a ideia se materializou. Dar vida e incorporar alegria em Gamcheon, cujas raízes assentam num passado, ainda recente, negro e marcante, com as feridas da guerra ainda por sarar, era tarefa árdua e estimulante. Assim, foi pela cor que se deram os primeiros passos. Cada casa exibe uma nova faceta, rejuvenescida e na vanguarda do panorama artístico de Busan. A arte atraiu visitantes. Os visitantes suportaram negócios locais. Os negócios locais geraram novos rendimentos. Criou-se uma simbiose em que todas as partes saíram conscientes de que prestaram, não só um serviço à comunidade de Gamcheon, mas também a toda a cidade.
Aliás, essa ideia surge como hino ao local, exibindo-se em diversos pontos um resumo: "A aldeia foi transformada num espaço cultural e de ideias criativas focado no ser humano. Desempenha um papel altamente educativo na comunidade ao solucionar problemas através da interacção e colaboração activa entre o governo local e os residentes."
Contudo, não é de frases pré-concebidas e ideias feitas que se fazem os locais. Há que dar tempo às mesmas e será ele que ditará o sucesso, ou não, de Gamcheon. Para já, e com apenas uma década de histórias, a aldeia que lutou para ser um marco numa cosmopolita cidade é um ponto de passagem obrigatória para quem se desloca a Busan, quer fique umas horas ou uma semana. E quem sabe, se não lançará, no futuro, o mote para a já confirmada candidatura de Busan a cidade anfitriã da Expo2030?
Afinal, a arte é um motor que alimenta a mudança. Dos tempos. Dos locais. Das pessoas.