"É um privilégio vindimar em plena cidade de Lisboa"
É junto ao aeroporto que se faz um dos melhores vinhos da região da capital. Poucos sabem mas é de lá que sai o Corvos de Lisboa — um vinho que resulta de uma parceria da Câmara com a Casa Santos Lima e que vai dando frutos.
Para lá de uns portões, passando o pequeno trilho de terra batida, surge uma planície onde só há vinhas a perder de vista. Desde bem cedo, como dita a tradição, há homens e mulheres de tesoura de poda na mão a colher cachos de uvas. Não se lhes vêem os rostos, tapados pelos chapéus que os protegem do sol, mas o suor escorre-lhes, reluzindo-lhes a pele. Os cestos de plástico, com o avançar da manhã, já estão cheios de uvas maduras provenientes das três castas que ali se produzem. Do outro lado da cerca, um avião rasa os terrenos. Prepara-se para aterrar no aeroporto de Lisboa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Para lá de uns portões, passando o pequeno trilho de terra batida, surge uma planície onde só há vinhas a perder de vista. Desde bem cedo, como dita a tradição, há homens e mulheres de tesoura de poda na mão a colher cachos de uvas. Não se lhes vêem os rostos, tapados pelos chapéus que os protegem do sol, mas o suor escorre-lhes, reluzindo-lhes a pele. Os cestos de plástico, com o avançar da manhã, já estão cheios de uvas maduras provenientes das três castas que ali se produzem. Do outro lado da cerca, um avião rasa os terrenos. Prepara-se para aterrar no aeroporto de Lisboa.
Para José Domingos Celeiro, de 94 anos, a arte da poda não tem segredo. Vindima há mais de 50 e a pele calejada das mãos comprova-o. É natural de Beja, mas há muito que deixou o Alentejo. A sua vida, segundo a descreve, é “um romance muito grande”. Um romance triste, confidencia, enquanto enche um cesto com uvas de Arinto a uma velocidade invejável para a idade. Esteve preso por causa da política. Essa “malfadada” como se lhe refere. A PIDE matou-lhe o pai e o tio quando fugiam para Espanha. Agora, abraça o avançar da idade dizendo que “já está velho” para essas coisas.
Ainda assim, não deixa de recordar os tempos de juventude em que andava por cima dos telhados “a fugir deles", como se refere aos agentes da antiga polícia política. “Estava sempre preso”, diz entre gargalhadas. O irmão, que era muito medroso, “pirou-se” e José ficou sozinho com as quatro irmãs. A vida obrigou-o a roubar para as sustentar e por isso é que foi parar tantas vezes atrás das grades. Depois de o irmão fugir, também por causa da política, ficou 35 anos sem saber dele. A PIDE trocou-lhe o nome nos registos. Muita vida ficou por contar, mas como afirma, está ali para vindimar e seriam precisas “umas quatro horas” para relatar tudo.
O Parque Vinícola de Lisboa não é igual aos outros. Afinal de contas, está localizado no coração da cidade. De um lado, o aeroporto, de onde se assiste ao rebuliço de aviões a levantarem e aterrarem. Do outro, um dos eixos rodoviários mais movimentados da cidade. Não seria de esperar que uma paisagem destas fosse a casa de um dos vinhos premiados da região – O Corvos de Lisboa.
Foi há apenas três anos que este terreno, localizado junto à antiga Feira do Relógio, um baldio onde havia barracas e entulho, se transformou numa área cultivável de onde se retira um dos melhores vinhos da região de Lisboa. José Sá Fernandes, vereador da câmara, já fez desta ocasião uma tradição. No ano passado, as vinhas ali colhidas, pela primeira vez, deram à Casa Santos Lima dois vinhos premiados num dos concursos mais importantes do país. A parceria entre a câmara de Lisboa e a produtora de vinhos dava assim os primeiros frutos. Este ano, todos aguardam com expectativa o que as uvas mais cosmopolitas do país terão para oferecer.
“É um privilégio vindimar em plena cidade de Lisboa”. O vereador com os pelouros do Ambiente e Estrutura Verde não esconde o orgulho que a vinha de dois hectares lhe suscita. São 40 as pessoas que estão de mãos embrenhadas nas videiras desde bem cedo. Metade delas vieram do Centro de Dia dos Olivais, ali perto. As outras 20 são trabalhadoras da Casa Santos Lima. “Uma das razões por que temos aqui a vinha é para que todos possam recordar e viver esta ligação à terra, que é de facto um privilégio”, diz o autarca. “O melhor de tudo é que vai sair daqui um grande vinho”.
As exportações têm aumentado e o reconhecimento dado aos vinhos de Lisboa também tem crescido. Um dos responsáveis por essas mudanças é José Luís Oliveira e Sousa, da Casa Santos Lima. Um dos objectivos da parceria com a câmara passa pela criação de novas atracções turísticas para a cidade e região, e é isso que tem sido feito.
“Está previsto abrir a vinha ao público para que possa ser um trampolim na criação de destinos alternativos aos locais mais visitados na cidade”. Na opinião do responsável da Casa Santos Lima, “há uma oferta alternativa muito rica e boa que é desconhecida para a maior parte dos turistas”. E o enoturismo da região de Lisboa é uma delas: “Penso que quando for conhecido, será uma paragem obrigatória”, acrescenta. A ideia é criar circuitos a 30 minutos da capital e proporcionar a visita de vinhas e adegas e respectivas provas aos turistas e público que queiram descobrir uma Lisboa diferente, sem ser o Mosteiro dos Jerónimos ou os Pasteis de Belém.
“Olhar para a vinha já é bom… agora, olhar para uma adega e provar o vinho e visitar uma aldeia próxima, é outra coisa”. Só assim Lisboa poderá reforçar ainda mais a sua posição de “sítio único”, afirma Sá Fernandes.
Apesar da proximidade ao aeroporto e aos carros, a vinha está de boa saúde. José Oliveira e Sousa assegura que “não há problema nenhum” e explica que a vinha é tratada com cobre e enxofre, retirando assim qualquer vestígio de poluição.
Prova disso é o número de garrafas produzido nesta propriedade de Lisboa. Chegam quase às 20 mil e muitas delas têm como destino países estrangeiros. Este ano, apesar de tudo, as alterações climáticas não se fizeram sentir tanto, permitindo que se voltasse aos “calendários de antigamente”, em que a vindima começava em Outubro, diz o responsável da Casa Santos Lima. E um dos motivos da qualidade destes vinhos é a exposição solar que proporciona às uvas os nutrientes necessários para desenvolverem qualidades excepcionais.
A câmara de Lisboa não quer cingir a aposta em iniciativas semelhantes apenas ao vinho, por isso, poderá estar para breve a criação de um pomar em Monsanto, com vista a estabelecer uma ligação forte com IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) e a fortalecer a ligação com produtores locais - tudo em prol da região. E porque o vinho se tornou um ex-líbris da cidade, será proposta brevemente, em Reunião de Câmara, a adesão do município de Lisboa à Rede Europeia das Cidades do Vinho.
Texto editado por Ana Fernandes