Estado já gastou 55% dos fundos da banca para travar défice de 2011
A medida que, em 2011, permitiu ao Governo cumprir as metas da troika para o défice, continua a pesar nas contas do Estado e custo pode superar as estimativas. Usando critérios mais actualizados, os bancos deveriam ter transferido pelo menos mais 1000 milhões para o Estado.
Passados menos de sete anos desde que, no final de 2011, foi aprovada a transferência para o Estado dos fundos de pensões da banca, mais de metade do valor então recebido já foi usado para pagar pensões, a um ritmo próximo de 500 milhões de euros ao ano. Estes números ilustram o risco que o Estado assumiu com uma operação que, à semelhança de outras realizadas ao longo dos anos, ajudou a cumprir as metas do défice no ano da transferência mas passou para o sector público responsabilidades que se podem vir a revelar maiores do que o antecipado.
Foi em Dezembro de 2011 que os fundos de pensões de diversas instituições financeiras portuguesas foram parcialmente transferidos, numa altura em que Passos Coelho era primeiro-ministro, Vítor Gaspar ministro das Finanças, e Portugal tentava, com grandes dificuldades, cumprir as metas para as contas públicas acordadas com a troika sete meses antes.
Com o acordo assinado com a banca, o Estado assumiu a responsabilidade de passar a pagar as pensões de 27 mil bancários já aposentados. Em troca, recebeu dos bancos 5971 milhões de euros. Foi esse valor que permitiu que o défice de 2011 declarado três meses depois a Bruxelas fosse de 4,2%, cumprindo as metas da troika, em vez dos 7,8% para os quais estava a caminhar.
O problema para as finanças públicas foi que, a partir desse momento, o Estado passou a ser responsável - através de transferências regulares das Finanças para a Segurança Social – pelo pagamento das pensões aos bancários aposentados, o que tem vindo a ter um peso na despesa pública próximo de 500 milhões de euros ao ano. No primeiro ano, foram 516 milhões de euros. Em 2017, atingiram-se os 469 milhões de euros, mostram os números publicados na execução orçamental mensal da Segurança Social e recolhidos pelo PÚBLICO.
No total, entre Janeiro de 2012 e Agosto de 2018, o Estado já pagou a estes pensionistas 3250 milhões de euros, o que significa que já se gastou 54,6% da verba recebida no final de 2011 pelos bancos.
Ao contrário de outros fundos também transferidos para o Estado, como os da CGD, PT ou CTT, por exemplo, no caso dos fundos da banca, o montante transferido não foi colocado numa reserva especial, que, sendo rentabilizada através de investimentos, servisse unicamente para pagar as pensões. Neste caso, os 5971 milhões de euros foram absorvidos pelo orçamento, sendo utilizados para diversos objectivos, acabando na prática por reduzir as necessidades de financiamento do Estado.
A questão que se colocou no momento da transferência – e que agora continua a colocar-se – é se o montante transferido pelos bancos em 2011, mesmo levando em conta a poupança obtida pelo Estado por ter ficado com menos necessidades de financiamento, se virá a revelar suficiente para pagar todas as pensões que o Estado assumiu.
“Se se gastou mais de metade do valor em menos de sete anos, então teríamos de estar perante uma esperança média de vida do universo dos pensionistas de pouco mais de 12 anos. Surpreender-me-ia muito se isso acontecesse”, afirma Jorge Bravo, professor da Universidade de Évora, especialista em questões relacionadas com o Sistema de Segurança Social.
Contas desactualizadas
Na base do valor acordado entre o Executivo e a banca em 2011, estiveram dois critérios fundamentais. O primeiro tem a ver com a tabela de mortalidade usada, isto é, a que ritmo é que se está à espera que as pensões deixem de ter de ser pagas. Quanto maior a esperança de vida considerada, mais elevadas serão as responsabilidades a assumir e mais alto teria que ter sido o valor transferido pelos bancos para o Estado.
Neste caso, foram utilizadas as tabelas de mortalidade “TV 73/77 menos um ano” para os homens e “TV 88/90” para as mulheres. Jorge Bravo assinala o facto de estas tabelas, em particular a “TV 73/77”, serem bastante antigas e poderem subavaliar a esperança de vida dos beneficiários. De acordo com os relatórios do Sector Segurador e dos Fundos de Pensões publicados anualmente, em 2011, cerca de 35% dos fundos de pensões em Portugal usavam, total ou parcialmente, ainda a tabela 73/77, mas a maioria já usava somente a 88/90, que é mais recente. Em 2016, a utilização da 73/77 baixou para cerca de 27%, ganhando ainda mais força a utilização da tabela 88/90.
O outro factor decisivo para a definição do valor a transferir é a chamada taxa de juro de desconto, isto é, o rendimento potencial anual que se estima que o valor do fundo pode gerar. Quanto mais alta a taxa de desconto assumida, menor a transferência que teria de ser usada.
Nas negociações, os bancos pretendiam inicialmente que a taxa de desconto adoptada fosse de 5,5%, que era a praticada por vários bancos (e aceite pelos reguladores) para o cálculo da capitalização dos seus próprios fundos. Mas o Governo forçou a descida para 4%, facto que obrigou os bancos a transferirem mais 900 milhões de euros do que pretendiam.
Os 4% eram, na altura, um valor que não destoava do que se praticava no mercado. Em 2011, a quase totalidade dos fundos usava uma taxa de desconto situada entre 4% e 5,5%. No entanto, desde esse momento até agora, muita coisa mudou nesta matéria, com os fundos de pensões a revelarem muito maiores dificuldades em obter rendibilidades elevadas. Em 2016, de acordo com o último relatório do Sector Segurador e dos Fundos de Pensões, a grande maioria dos fundos já usa uma taxa entre 1,5% e 2,5%.
Se, em vez dos 4% utilizados, se tivesse adoptado na altura uma taxa de desconto de 2%, mais adaptada à realidade actual, em vez dos 5971 milhões de euros, os bancos teriam que ter transferido um valor próximo dos 7000 milhões de euros, isto é, mais cerca de 1000 milhões de euros.
Risco no Estado
“Se se tivesse usado no momento da transferência uma taxa de desconto semelhante à que agora se aplica, as responsabilidades estimadas seriam maiores e a transferência teria sido mais elevada”, afirma Miguel Coelho, professor na Universidade Lusíada e especialista em temas relacionados com a Segurança Social. Embora salientando que os critérios utilizados “estavam em linha com os usados na altura pela banca e em linha com aquilo que era exigido pela supervisão”, o economista assinala que “os critérios adoptados correspondiam ao mínimo exigido uma vez que a adopção de critérios mais conservadores obrigaria a reforço dos fundos de pensões por parte dos bancos com efeitos negativos sobre os rácios de capital”. “Recorde-se as dificuldades de capitalização que os bancos tiveram nessa data”, afirma.
No momento da negociação, no final de 2011, o Governo, com a troika acabada de chegar ao país, procurava reduzir o défice público desse ano e reduzir as suas necessidades de financiamento, mas tinha também a noção que estava com uma banca cada vez mais fragilizada, que poderia, como se veio a confirmar de forma dramática nos anos seguintes, vir a exigir intervenções muito dispendiosas por parte do Estado.
Ainda assim, defende Jorge Bravo, o Estado deveria ter adoptado princípios de maior prudência, não só com uma taxa de desconto mais próxima do crescimento potencial do PIB português, mas também prevendo no contrato que as entidades antes detentoras do fundo seriam responsáveis por desvios significativos face ao cenário base. “O risco foi integralmente transferido para o Estado”, lamenta.
O mesmo tipo de passagem de risco aconteceu com a transferência dos fundos de pensões de várias empresas públicas (algumas entretanto privatizadas) realizada ao longo dos últimos 15 anos pelos mais variados governos.
Por isso, defende Jorge Bravo, “a situação merecia que se fizesse agora uma nova avaliação actuarial independente, se não promovida pelo Governo, pelo menos por entidades como o Tribunal de Contas ou o Conselho das Finanças Públicas”.
O PÚBLICO questionou o actual Governo sobre quais as estimativas actualizadas para as despesas futuras com os pensionistas da banca, mas não obteve qualquer resposta a esta questão em tempo útil.