Otelo: quando a palavra é um veneno que devora a alma

O Teatro Nacional São João tem em cena até 13 de Outubro Otelo, de Shakespeare, com encenação, cenografia e figurinos de Nuno Carinhas a partir de uma nova tradução de Daniel Jonas. Uma história de amor e vingança, de ressentimento e intriga, de violência doméstica e xenofobia.

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Um chão preto espelhado figura, no palco do Teatro Nacional São João (TNSJ), os canais de Veneza, onde se inaugura a acção de Otelo, e também as águas que o protagonista depois cruzará para ir defender Chipre dos turcos, mas esse negrume que reflecte corpos e objectos é sobretudo “um espaço mental”. Di-lo Nuno Carinhas, que nesta sua encenação da peça de Shakespeare, estreada sexta-feira no palco do São João, optou por uma cenografia tão sóbria quanto poeticamente eficaz, marcada ainda por uma “luz temperamental” que acompanha as variações de temperatura da peça, das cenas iniciais de luminosa felicidade conjugal de Otelo e Desdémona aos progressivos efeitos devastadores das venenosas insídias de Iago no coração do grande general mouro, que o levarão a uma orgia de violência e posterior arrependimento.

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Um chão preto espelhado figura, no palco do Teatro Nacional São João (TNSJ), os canais de Veneza, onde se inaugura a acção de Otelo, e também as águas que o protagonista depois cruzará para ir defender Chipre dos turcos, mas esse negrume que reflecte corpos e objectos é sobretudo “um espaço mental”. Di-lo Nuno Carinhas, que nesta sua encenação da peça de Shakespeare, estreada sexta-feira no palco do São João, optou por uma cenografia tão sóbria quanto poeticamente eficaz, marcada ainda por uma “luz temperamental” que acompanha as variações de temperatura da peça, das cenas iniciais de luminosa felicidade conjugal de Otelo e Desdémona aos progressivos efeitos devastadores das venenosas insídias de Iago no coração do grande general mouro, que o levarão a uma orgia de violência e posterior arrependimento.

Como um redemoinho de almas, a peça, que se manterá em cena até dia 13, suga as personagens para esse desenlace trágico que terá como epicentro o espaço fechado do quarto de cama de Otelo e Desdémona. Nuno Carinhas, cuja versão cénica teve a colaboração de Sara Barros Leitão e de Daniel Jonas, a quem se deve também a tradução de Otelo utilizada nesta dramaturgia, centrou-se nessa dimensão mais íntima e voyeurista da peça, uma opção conseguida e que se adivinha desde a cena inicial, na qual são abolidas as fronteiras convencionais entre palco e plateia.

Mas qualquer encenador de Otelo está de algum modo condenado a operar em segundo grau, já que o verdadeiro encenador é Iago, um dos mais fascinantes vilões criados pela imaginação de Shakespeare: são as instruções de Iago, camufladas em confidências e desinteressados conselhos de amigo, que ditam as acções do núcleo de personagens que gravita à sua volta. E o que o move talvez só aparentemente se reduza a motivos tão óbvios e comezinhos como o ciúme e o ressentimento.

É provável que o conceito de spoiler não abranja o enredo de uma peça estreada em 1604, encenada vezes sem conta, traduzida para todas as línguas do mundo e regularmente adaptada ao cinema, mas, nunca fiando, adianta-se apenas o ponto de partida: Otelo, um general mouro no exército veneziano, seduz, com a emocionante narração das suas muitas aventuras, Desdémona, filha de Brabâncio, um orgulhoso senador de Veneza. Ao mesmo tempo, promove a seu braço-direito um jovem favorito, Cássio, decepcionando outro oficial, Iago, que considera que as provas que deu no campo de batalha o tornam mais merecedor de uma tal posição. Iago começa por intrigar com um pretendente de Desdémona, Rodrigo, convencendo-o a avisar Brabâncio do casamento secreto da filha com o estrangeiro Otelo, e depois instilará cuidadosamente na mente do vaidoso general mouro a suspeita de que a sua jovem e inocente esposa o trai com Cássio.

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Nelson Garrido

“Os objectivos da intriga de Iago não são muito explícitos, parece mais uma coisa compulsiva do que algo que vise um grande propósito”, observa Nuno Carinhas. “Ele é muito rápido a apanhar deixas para continuar a sua démarche, mas não se percebe muito bem para quê”. De facto, quando Otelo, eficazmente manipulado, despromove Cássio e oferece o seu lugar a Iago, este último, cumprido aquele que era aparentemente o seu desígnio, poderia talvez ainda ter evitado algumas das consequências mais funestas da cabala que desencadeara, mas, pelo contrário, mantém impiedosamente em marcha a sua máquina conspirativa.

Há na traição de Iago um zelo prazeroso, físico, que o actor que encarna a personagem, Dinarte Branco, transmite intensamente, do mesmo modo que João Cardoso, que veste a pele de Otelo, consegue tornar visíveis os indícios físicos da demolição interior do protagonista. “Com a idade, percebemos que quando temos uma grande paixão e ela se desmorona, há também uma parte de nós que implode, e o Iago tem a argúcia de detectar essa falha em Otelo, e é através dela que abre uma brecha ainda maior e leva à ruína de toda aquela gente, incluindo a da sua própria mulher [Emília, aia de Desdémona]”. É também por isso que Carinhas quis “um elenco maduro”, que além de Dinarte Branco e João Cardoso, inclui Maria João Pinho, como Desdémona, e António Durães no papel de Brabâncio.

Se a encenação de Carinhas, desviando-se de abordagens mais estritamente centradas na personagem de Otelo, reconhece a centralidade de Iago, o que talvez a singularize ainda mais seja a sugestão de que Otelo e Iago possam ser um par de duplos, duas faces da mesma moeda, uma identificação que, argumenta, “a parecença física entre os dois actores torna irrecusável”.

Num espectáculo que dura cerca de duas horas e meia, Carinhas teve ainda o cuidado de dar a Otelo e Desdémona algum tempo para fruírem a sua efémera felicidade. “Quando chegam a Chipre, estão os dois felicíssimos: a guerra terminou, porque os turcos naufragaram, e todas as circunstâncias se conjugam para que aquilo possa ser uma verdadeira lua-de-mel”, nota Carinhas, “mas uma hora depois já está tudo estragado”.

Sublinhando que o elenco de Otelo “são personagens humanas, de carne e osso”, e que não há nesta peça quaisquer sugestões sobrenaturais, Nuno Carinhas diz que, ao contrário do que sucedera na sua recente encenação de Macbeth, não sentiu desta vez a necessidade de situar a acção num qualquer passado distante. “Trouxe as personagens para o pé de nós, vestidas como nós”, diz.

Shakespeare, acrescenta, “tinha essa grande qualidade de nos confrontar com os nossos grandes assuntos, que continuam hoje a sê-lo”. Mas a sua encenação também escapa ao risco, que poderia ser tentador, de colar demasiado a peça ao olhar actual sobre determinados temas, reduzindo à violência doméstica a relação entre Otelo e Desdémona ou enfatizando a dimensão racista da aversão da nobreza veneziana à mistura de sangues com o general mouro. “O conceito de ‘outro’ alargou-se e não é preciso que seja doutra raça, basta que seja de outra proveniência, que não faça parte daquela sociedade”, argumenta. “Mas admito que vá ser criticado por não ter dado o papel de Otelo a um actor negro”.