O segundo milagre de Tancos
Há cem anos, a encenação do “Milagre de Tancos” saiu-nos cara mas terá sido, ao menos, sincera e convicta. O segundo “Milagre de Tancos” só não é mais embaraçoso porque desta vez, felizmente, não morreu ninguém.
Quando, em março de 1916, a Alemanha declarou guerra a Portugal — como os republicanos de Afonso Costa esperavam ansiosamente desde o início da Grande Guerra em agosto de 1914 — o país confrontou-se com uma dificuldade gigantesca: como preparar e enviar milhares de jovens portugueses para a frente de batalha europeia, na fronteira entre a França e a Bélgica? Foi então que o polígono militar de Tancos, no Ribatejo, perto das linhas férreas ali no Entroncamento, prestou o seu grade serviço à pátria e à propaganda. Em apenas três meses, instalados nas famosas tendas de pau e de lona, vinte mil mancebos receberam treino em armas enviadas por ingleses e franceses, foram transportados por camiões comprados aos americanos e vestidos com uniformes também cedidos pelos aliados.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando, em março de 1916, a Alemanha declarou guerra a Portugal — como os republicanos de Afonso Costa esperavam ansiosamente desde o início da Grande Guerra em agosto de 1914 — o país confrontou-se com uma dificuldade gigantesca: como preparar e enviar milhares de jovens portugueses para a frente de batalha europeia, na fronteira entre a França e a Bélgica? Foi então que o polígono militar de Tancos, no Ribatejo, perto das linhas férreas ali no Entroncamento, prestou o seu grade serviço à pátria e à propaganda. Em apenas três meses, instalados nas famosas tendas de pau e de lona, vinte mil mancebos receberam treino em armas enviadas por ingleses e franceses, foram transportados por camiões comprados aos americanos e vestidos com uniformes também cedidos pelos aliados.
A Ilustração Portuguesa da época exultava assim: “A inquebrantável energia e o grande espírito disciplinado do ilustre ministro da guerra, o major Norton de Matos, realizaram, quasi de um dia para o outro, este milagre de ordem, método e excelente organização de Tancos”.
O nome “milagre de Tancos” pegou e foi sob esse ambiente de entusiasmo patriótico que os primeiros soldados do Corpo Expedicionário Português partiram para a Flandres em janeiro de 1917. O que se seguiu não foi bonito. Os fardamentos eram, afinal, inadequados — não só impróprios para a estatura dos portugueses da época como para a realidade de chuva, lama e gás que eles iriam encontrar nas trincheiras. As botas deixavam entrar água, os casacos não eram impermeáveis e dificultavam a colocação das máscaras de gás, os sobretudos eram demasiado compridos e ficavam ensopados de lama. No final desse ano, um golpe de estado tirou os intervencionistas do poder e instaurou um regime presidencialista liderado por Sidónio Pais. Os comandos militares que voltaram a Portugal já não regressaram à frente, deixando os jovens expedicionários desprotegidos. Em abril de 1918, quando se preparavam para desmobilizar, um ataque alemão desbaratou-os em La Lys, o que resultou numa medonha mortandade para os portugueses.
A memória do “Milagre de Tancos” sobreviveu, mas mais como exemplo dos enganos da propaganda do que de real capacidade de preparação ou organização militar portuguesa.
Cem anos depois, como dizia o outro, a tragédia repete-se como farsa. Eis-nos perante um novo milagre de Tancos.
Como os leitores estarão lembrados, a junho do ano passado as Forças Armadas confirmaram o desaparecimento por furto de uma enorme quantidade de explosivos, armas e munições dos paióis de Tancos. É penoso dizê-lo, mas a displicência que o caso revelou foi vergonhosa para o país e, em particular, para as suas Forças Armadas. E poderia ter tido consequências terríveis, em tempo de crime organizado, terrorismo e guerras inorgânicas em várias partes do globo, se as armas portuguesas acabassem a servir para matar inocentes em qualquer parte do globo. Como se explica que os militares não tivessem sabido guardar as armas que estão ao seu cuidado? Ou, eventualmente e em caso de necessidade, exigir ao poder político condições para as guardar?
Estávamos nisto quando as armas reapareceram quase todas, e em condições tão misteriosas quanto tinham desaparecido. Era evidente que pelo menos alguma parte da história, ou se calhar a história toda, estava mal contada. E agora, ao acreditar numa investigação da Polícia Judiciária, a realidade é tão risível e embaraçosa quanto poderíamos imaginar: um ladrão de 36 anos, ex-fuzileiro, furtou as armas para as vender, mas ao ver as notícias em todo o lado ter-se-á assustado e entrado num acordo com membros e dirigentes da Polícia Judiciária Militar para devolver as armas desde que sob a encenação de uma chamada anónima que o deixasse escapar sem mais investigação nem perseguição. A Polícia Judiciária Militar ficaria com os louros de ter resolvido o caso antes da sua congénere civil (a não ser que a PJ propriamente dita se esteja agora a enganar com esta acusação). E a decisão teria sido tomada a bem do “interesse nacional”.
Há cem anos, a encenação do “Milagre de Tancos” saiu-nos cara mas terá sido, ao menos, sincera e convicta. O segundo “Milagre de Tancos” só não é mais embaraçoso porque desta vez, felizmente, não morreu ninguém.
Mas a lição ainda não aprendida: os milagres não se improvisam.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico