Charles Aznavour, o adeus a um incansável obreiro da canção
O cantor francês morreu aos 94 anos. Era um marco da chanson, dando voz a temas como She ou La bohème. Nos últimos dez anos actuou por duas vezes em Portugal, onde foi presença assídua nos anos 1950 e 1960.
O cantor francês Charles Aznavour morreu esta segunda-feira na sua residência no Sul de França. Tinha 94 anos e se não morreu em palco (“poderei morrer à mesa de trabalho, não em palco”, disse ele numa entrevista a Adelino Gomes, para a revista do PÚBLICO, em 2008) morreu entre concertos.
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O cantor francês Charles Aznavour morreu esta segunda-feira na sua residência no Sul de França. Tinha 94 anos e se não morreu em palco (“poderei morrer à mesa de trabalho, não em palco”, disse ele numa entrevista a Adelino Gomes, para a revista do PÚBLICO, em 2008) morreu entre concertos.
Planeava actuar em Bruxelas no mês que agora se inicia e andava em digressão pelo Japão, mas foi forçado a regressar a França e a cancelar os concertos que tinha em agenda porque partiu um braço numa queda, da qual já não recuperou. Com uma carreira de impressionante longevidade (85 anos, aos nove já actuava como cantor e comediante), Aznavour escreveu ou co-escreveu mais de 1000 canções, gravou 1200, cantou em seis línguas, lançou 91 álbuns de estúdio e vendeu mais de 180 milhões de discos. Não se considerava uma estrela, mas “um trabalhador incansável da canção” ou, como disse na entrevista já citada, “um dos últimos artesãos da canção.”
Nascido Shahnour Vaghinagh Aznavourian em Paris, em 22 de Maio de 1924, filho de emigrantes arménios, ele cantor e ela actriz, os pais tinham um restaurante que fechou nos anos 1930 devido à crise económica. Isso empurrou o jovem Aznavour para uma ribalta que já conhecia da família, iniciando aos nove anos no Théâtre du Petit Monde uma carreira de cantor e de comediante.
O encontro com o pianista Pierre Roche, em 1941, já em plena II Guerra Mundial, deu-lhe novo rumo: formaram o duo Roche e Aznavour, que mais tarde seria convidado por Édith Piaf para a acompanharem em digressão por França e pelos Estados Unidos, no final dos anos 1940. Foi Piaf, aliás, que convenceu Aznavour a iniciar uma carreira a solo. Ele seguiu-lhe os conselhos, mas esteve prestes a desistir, porque o sucesso que alcançava nas canções não tinha eco nos palcos.
Numa canção que gravou em 1960, Je m’voyais déjà, ele sintetizará esses tempos de decepção, mas sem deixar de anotar neles alguma esperança. “Ainda não tive a minha oportunidade/ Outros conseguiram-no com pouca voz mas muito dinheiro/ Eu talvez seja demasiado puro ou vá muito à frente/ Mas um dia virá em que lhe mostrarei que tenho talento!” Esse dia não tardou muito. Em 1954, lançada em disco, a canção Sur ma vie foi um enorme sucesso. E o compositor passou a ser encarado como um cantor a seguir, nos discos e em palco.
Mas ficou a dever esse sucesso à sua persistência, como se deduz do que escreveu na mini-autobiografia que foi publicada no seu site oficial: “Os professores que consultei eram categóricos: desaconselhavam-me de cantar. Portanto, cantarei até rebentar a glote.”
Várias vezes em Portugal
Ao longo da sua longa carreira, Aznavour deu voz a canções como La bohème, Que c’est triste, Venise, She, Il faut savoir, Hier encore, Sa jeunesse, Emmenez-moi ou Fado, onde enfatizou “os amores ardentes de Portugal”, país onde foi presença assídua nas décadas de 1950 e 1960. E onde a sua ligação maior foi Amália Rodrigues.
No livro de memórias Amália, Uma Biografia, de Vítor Pavão dos Santos (Presença, 2005), ela recordava assim essa ligação: “O Aznavour queria fazer uma cantiga para mim. Ouviu-me cantar o Ai Mouraria e para fazer um bocadinho de fado apanhou-lhe o princípio e fez o Aïe Mourir Pour Toi, que eu tive mesmo que cantar no Olympia [1957] e fez bastante sucesso.” Na última década, Aznavour voltou duas vezes a Portugal para dois grandes concertos e na mesma sala lisboeta, o antigo Pavilhão Atlântico (da segunda vez já Meo Arena e hoje Altice Arena): em Fevereiro de 2008, ano em que recebeu a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores; e em Dezembro de 2016.
Este último concerto ocorreu um ano após sair o seu último disco de estúdio, Encores, com onze canções da sua autoria, uma em homenagem a Édith Piaf (De la môme à Édith), além de uma versão de um original de Nina Simone, You’ve got to learn, que decidiu cantar no inglês original.
Arménia, uma causa
Mas a música era apenas uma das facetas do seu trabalho. Outra era a de actor, e nessa condição participou em mais de 80 filmes e telefilmes. Começou com um papel menor, não creditado, em La Guerre des Gosses, de Eugène Deslaw e Jacques Daroy (1936), vindo depois a desempenhar papéis de maior relevo. Da longa lista, destacam-se filmes como O Testamento de Orfeu (de Jean Cocteau, 1959), Disparem Sobre o Pianista (de François Truffaut, 1960), Le Temps des loups (de Sergio Gobbi, 1969), O Tambor (de Volker Schlöndorff, 1979), Les Fantômes du chapelier (de Claude Chabrol, 1982) e, com especial relevo, Ararat (2002), do realizador arménio Atom Egoyan, filme que reflecte sobre o genocídio dos arménios pelo império otomano e onde Aznavour teve o papel principal que, segundo se escrevia esta segunda-feira no Le Monde, foi “o seu filme mais pessoal.”
A Arménia foi, aliás, sempre uma causa presente para Charles Aznavour. Em 1988, quando um terramoto ali fez cerca de 50 mil mortos, ele criou a fundação Aznavour Pela Arménia e gravou, com a colaboração de mais de 80 outros artistas a sua canção Pour toi Arménie, registo filmado pelo realizador de origem arménia Henri Verneuil. A canção, feita para acudir à tragédia, vendeu em disco mais de 1 milhão de exemplares e Aznavour foi, depois, nomeado embaixador permanente na Arménia pela UNESCO.
A fechar a autobiografia que está no seu site oficial, Aznavour escreveu: “Aquilo que fiz, fi-lo com amor e seriedade, embora me tenha sempre divertido, e fi-lo respeitando o meu público e os meus valores.”
Na entrevista a Adelino Gomes, no PÚBLICO, citava até dois outros Charles como sua referência artística mundial: em França, Trenet; nos EUA, Ray Charles. E sobre o acto de compor, dizia: “Há os que fazem coisas políticas, eu prefiro canções humanitárias (…). Por isso escrevo ‘eu vivo nos subúrbios’, não ‘nós’. Quando escrevi sobre a homossexualidade, não disse ‘ele vive com a mãe’, mas sim ‘eu vivo’. Podem pensar que sou homossexual. Estou-me nas tintas. Quando nos comprometemos, devemos fazê-lo a 100%.” E noutra passagem: “Nunca canto canções em que não esteja implicado. Para mim, uma grande canção é um grande texto. A música passa de moda. Um grande texto permanece um grande texto.”
O abandono da vida
Com três casamentos e seis filhos, multipremiado (tem uma estrela no Passeio da Fama, em Hollywood), Charles Aznavour não se imaginava a morrer em palco, embora ainda por eles andasse, com destemor e sem poupar na voz, em idades que requerem mais cuidados, aos 80 e 90 anos.
Voltando à já citada entrevista a Adelino Gomes: “Morrer em palco? Não, seguramente. Poderei morrer à mesa de trabalho, não no palco.” Já a finalizar, enfrentava deste modo algumas perguntas sobre a vida e a morte: “Já disse que não é muito de acreditar em Deus...”, perguntava o jornalista. “Depende dos dias”, dizia Aznavour. “E na outra vida?” “Aquilo lá em cima deve estar muito atravancado. Tenho dificuldade em acreditar que haja um éden onde está toda a gente. Imagine a quantidade de pessoas que existiram desde o princípio do mundo. É verdade que há um inferno que se encarregaria de muitas. Deve estar, aliás, muito mais cheio que o paraíso.”
Nova pergunta: “Teve uma vida cheia?” “Sim, sem excessos. Enfim, sem excessos, a partir de certa idade. Antes do meu último casamento [o terceiro], cometi algumas loucuras, próprias da idade. Digamos que aproveitei bem a vida.” Uma última pergunta: “Mas chegará, então, esse tal momento em que vai abandonar a vida...” Resposta breve: “Eu não vou abandonar a vida. A vida é que me vai abandonar. Esse é que é o problema.”