CP tem comboios abandonados que podiam evitar crise na ferrovia
Dezenas de locomotivas e carruagens estão encostadas no Entroncamento e no Barreiro. Empresa nunca lhes fez uma manutenção mínima para serem reserva estratégica. Alugueres a Espanha e supressões em todo o país teriam sido desnecessários.
A CP já tem 20 automotoras a diesel alugadas a Espanha (pelas quais paga 7 milhões de euros por ano) e prevê alugar mais quatro (por mais 1,4 milhões de euros anuais), bem como comboios eléctricos de longo curso. Mas nas suas instalações a empresa tem encostadas locomotivas e carruagens que poderiam ser postas ao serviço e evitar esse aluguer, caso tivessem sido alvo de uma manutenção mínima.
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A CP já tem 20 automotoras a diesel alugadas a Espanha (pelas quais paga 7 milhões de euros por ano) e prevê alugar mais quatro (por mais 1,4 milhões de euros anuais), bem como comboios eléctricos de longo curso. Mas nas suas instalações a empresa tem encostadas locomotivas e carruagens que poderiam ser postas ao serviço e evitar esse aluguer, caso tivessem sido alvo de uma manutenção mínima.
O caso mais flagrante é o de 20 locomotivas Alstom que estão parqueadas ao ar livre no Entroncamento, inicialmente com o objectivo de serem reserva estratégica para a CP, mas que nunca foram alvo de qualquer manutenção. Mais: nem sequer foram ligadas periodicamente, o que aumentou rapidamente o seu grau de obsolescência.
Um engenheiro ferroviário, que foi nos anos 90 director de material da CP, explicou ao PÚBLICO, sob anonimato, os riscos associados a esta situação.
“A imobilização prolongada no exterior provoca a degradação do isolamento do equipamento eléctrico, em particular dos motores de tracção. Na parte mecânica os principais danos estão relacionados com a corrosão devida à condensação da humidade durante os ciclos de variação da temperatura ambiente. Este fenómeno afecta também os rolamentos porque associado à imobilidade provoca a ruptura da película lubrificante causando danos irreversíveis nas pistas”.
Foi muito tempo a depender de muito pouco. Bastaria ligar as locomotivas periodicamente e pô-las a fazer uma rotação de vez em quando para que elas se mantivessem hoje operacionais sem necessidade de reparações que, a serem executadas, serão dispendiosas. Aliás, a prática de colocar material mais antigo ao serviço para evitar a sua obsolescência é frequente em praticamente todas os operadores ferroviários, com destaque para os suíços, franceses e alemães.
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Além das locomotivas, a CP tem também encostadas algumas dezenas de carruagens Sorefame que durante décadas fizeram parte da geografia ferroviária portuguesa. Construído na Amadora entre 1961 e 1975, este material circulou em todo o território nacional e algum foi até modernizado e dotado de ar condicionado para integrar a frota dos actuais Intercidades.
Em 2016 a CP fez movimentar 25 destas carruagens do Entroncamento para Contumil (Porto) a fim de as renovar e pô-las ao serviço nos Intercidades, mas o projecto nunca avançou. A falta de pessoal na EMEF, que já na altura se fazia sentir, terá sido uma das razões. Em consequência a CP terá agora de alugar a Espanha comboios eléctricos para o longo curso.
Supressões evitáveis
A empresa detém também algumas locomotivas a diesel da série 1400 que, rebocando uma ou duas carruagens, poderiam efectuar alguns serviços regionais em linhas onde constantemente estão a ser suprimidos comboios (Oeste, Alentejo e Algarve).
Mas a empresa não o faz alegando que as carruagens não têm ar condicionado e que os custos de exploração são mais elevados porque estas locomotivas precisam de um segundo agente a acompanhar o maquinista. E porque implicam custos de manobra para reverter a locomotiva nas estações terminus.
A CP, porém, nunca fez um inquérito aos seus clientes sobre se preferem ter um comboio sem ar condicionado ou ficar em terra sem transporte. A sua opção, nesse aspecto, é clara: prefere suprimir comboios em vez de assegurar a sua oferta regular com custos mais elevados.
A AMT (Autoridade da Mobilidade dos Transportes), que é o organismo regulador, ainda não se pronunciou pelo facto de a empresa ter vindo, desde Janeiro de 2017, a suprimir comboios praticamente todos os dias por falta de material circulante.
António Brancanes, da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro, em cujas fileiras se encontram verdadeiros especialistas na ferrovia, também é de opinião que mais vale voltar a pôr a circular nos carris material que tinha sido retirado do serviço, do que permitir supressões todos os dias por as automotoras existentes estarem envelhecidas e não aguentarem mais quilómetros.
“Não é a solução ideal e as 1400 e carruagens Sorefame poderiam apenas constituir um reforço às automotoras que estão em fim de vida útil, mas é a que configura mais respeito pelos clientes que hão-de preferir um comboio velho a não ter comboio”, disse ao PÚBLICO. “Afinal é o serviço público que está em causa”, concluiu.
Em sintonia está Rui Raposo, da Comissão de Defesa da Linha do Oeste, que defende também a utilização de locomotivas 1400 e carruagens na linha que liga Lisboa a Caldas da Rainha e Coimbra.
“Essa possibilidade iria resolver, pelo menos provisoriamente, o problema das supressões. Qualquer dia não há comboios na linha do Oeste”, frisou em declarações ao PÚBLICO.
Suburbanos parados
A CP possui ainda material eléctrico parqueado em Campolide e Algueirão que está em estado de semi-abandono e que, se estivesse operacional, reduziria os riscos de supressão de serviços por avaria, como já tem acontecido na linha de Sintra.
O ex-director de material da CP alerta que algumas estão a ser canibalizadas, isto é, utilizadas como reserva de peças sobressalentes, tornando-se assim inúteis para o serviço. Em sua opinião, corre-se o risco de, quando as linhas forem electrificadas, não haver material de tracção eléctrica para nelas circularem.
Atento às questões da manutenção, este especialista diz que não entende por que motivo a electrificação da linha do Algarve não é prioritária (é um dos últimos investimentos previstos no Ferrovia 2020). “Se se electrificassem as ‘pontas” da linha do Algarve, podia-se retirar de lá o material a diesel e ter a tracção eléctrica uniformizada em praticamente todo o sul do país”, diz.
O PÚBLICO fez várias perguntas à CP relacionadas com o material circulante encostado e a sua possível utilização, mas não obteve resposta em tempo útil.