Serralves, sintoma e panorama nacional
Se nem tudo está esclarecido neste caso, não restam dúvidas de que ocorreu um ato de censura. O diretor artístico do museu e curador da exposição, João Ribas, anunciou previamente a exposição com uma determinada configuração e ela inaugurou com outra, contra sua vontade.
O recente caso de censura à exposição de Robert Mapplethorpe, Pictures, protagonizado pela administração da Fundação de Serralves, levanta questões circunstanciais e de fundo que importam para uma reflexão alargada sobre as instituições de arte contemporânea que temos e desejamos ter. Se nem tudo está esclarecido neste caso, não restam dúvidas de que ocorreu um ato de censura. O diretor artístico do museu e curador da exposição, João Ribas, anunciou previamente a exposição com uma determinada configuração e ela inaugurou com outra, contra sua vontade. Na sequência o diretor demitiu-se, num ato que merece ser louvado pela abnegação do interesse pessoal e as implicações que tem na sua vida profissional. O mesmo não se pode dizer desta e de outras administrações, cujos rostos giram de uma área de atividade para outra nos antípodas, sem qualquer atrito, como se o seu conhecimento das matérias em causa fosse infinito. Não é esta presunção que terá levado o administrador José Pacheco Pereira a declarar que ninguém melhor que ele saberia o que era a censura, só que as certezas e configurações de um tempo não esgotam um problema e a censura nos tempos democráticos – passo o paradoxo – ganhou outros contornos. Ela exerce-se por assédio, insistência, falsa negociação e sugestão de implicações futuras que põem a nu as relações de poder e deixam entre a espada e a parede qualquer projeto que importa descartar. Fontes relatam que a administração fez três visitas à exposição em instalação e com esta atitude obrigou a remontá-la várias vezes. Como consequência, várias obras foram retiradas por questões estritamente técnicas, menos duas, que o foram contra a seleção do curador, como este relata. Consta que a videovigilância o demonstra, caso para dizer-se que o vídeo espelha também as falhas narcísicas!
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O recente caso de censura à exposição de Robert Mapplethorpe, Pictures, protagonizado pela administração da Fundação de Serralves, levanta questões circunstanciais e de fundo que importam para uma reflexão alargada sobre as instituições de arte contemporânea que temos e desejamos ter. Se nem tudo está esclarecido neste caso, não restam dúvidas de que ocorreu um ato de censura. O diretor artístico do museu e curador da exposição, João Ribas, anunciou previamente a exposição com uma determinada configuração e ela inaugurou com outra, contra sua vontade. Na sequência o diretor demitiu-se, num ato que merece ser louvado pela abnegação do interesse pessoal e as implicações que tem na sua vida profissional. O mesmo não se pode dizer desta e de outras administrações, cujos rostos giram de uma área de atividade para outra nos antípodas, sem qualquer atrito, como se o seu conhecimento das matérias em causa fosse infinito. Não é esta presunção que terá levado o administrador José Pacheco Pereira a declarar que ninguém melhor que ele saberia o que era a censura, só que as certezas e configurações de um tempo não esgotam um problema e a censura nos tempos democráticos – passo o paradoxo – ganhou outros contornos. Ela exerce-se por assédio, insistência, falsa negociação e sugestão de implicações futuras que põem a nu as relações de poder e deixam entre a espada e a parede qualquer projeto que importa descartar. Fontes relatam que a administração fez três visitas à exposição em instalação e com esta atitude obrigou a remontá-la várias vezes. Como consequência, várias obras foram retiradas por questões estritamente técnicas, menos duas, que o foram contra a seleção do curador, como este relata. Consta que a videovigilância o demonstra, caso para dizer-se que o vídeo espelha também as falhas narcísicas!
No entanto, o efeito censório não acaba aqui. A exposição, na versão final, passou a ter um espaço reservado para determinados trabalhos, o que corresponde a uma curadoria dentro da curadoria assinada pelo conselho de administração. Se não é curadoria e exorbitação descontrolada das funções deste, é uma instrução censória ao discurso curatorial.
O caso leva-nos a questionar vários aspetos: o papel dos administradores representantes do Estado, o âmbito das práticas administrativas e que modelos de administração desejamos. No que respeita aos administradores do Estado seria de esperar que a sua atuação avisada evitasse uma ocorrência destas. O respeito pela ordem institucional de funções e pelos valores da liberdade de expressão são princípios elementares que não foram salvaguardados por quem tem essa função. A articulação com o Ministério da Cultura, que participa na Fundação de Serralves com 4 milhões de euros anuais, deveria ter ocorrido e dado lugar a um inquérito aos acontecimentos.
Um ato destes não surge por uma posição sistemática de censura da parte de um conselho de administração que agora se desvela, mas no quadro de um processo generalizado de interferências deste em todas as atividades do museu e da fundação. Não é caso único mas crescente, que afeta muitas instituições ligadas à arte contemporânea. A questão, por esclarecer, da integração na programação da exposição de Joana Vasconcelos, I’m your mirror, vinda do Guggenheim de Bilbau, é mais outro sintoma deste problema, que é o dos limites da atividade administrativa e dos perfis dos administradores culturais.
Tem-se assistido crescentemente neste século a uma presença excessiva dos conselhos de administração na vida dos museus ou centros de arte contemporânea que lhes dão uma configuração empresarial e organizam as suas atividades em função de valores alheios aos critérios do conhecimento, que enforma o domínio disciplinar da instituição. Esta atitude começou com uma ênfase nos serviços educativos, não por preocupação com a construção de processos de mediação suscetíveis de potenciar o domínio especulativo sobre as exposições apresentadas, ação mais do que desejável, mas sob as luzes insinuou-se um instrumento para angariar números de visitantes. Com este pretexto, as escolas podiam proporcionar números significativos. Os serviços educativos tornaram-se nas primeiras áreas de ingerência, talvez mais mitigada. Outro passo foi a interferência mais ou menos direta nas programações em função da métrica de públicos e a exigência de exposições blockbuster capazes de projeção de uma imagem de marca e de esvaziar os orçamentos para uma programação equilibrada. Com isto se perde uma perspetiva adequada aos interesses e possibilidades de afirmação, troca e reconhecimento das práticas artísticas nacionais num contexto internacional e atual, reduzindo o contexto nacional a uma posição de mero consumidor. Mais recentemente foram levantadas polémicas sobre o processo de escolha dos diretores artísticos, geralmente apontados pelas administrações. Estas assumem facilmente o papel de escrutinadores da competência científica que é solicitada a um diretor artístico, dispensando deste modo a convocação de júris especializados ou então contratando empresas internacionais especializadas, que têm clientela para satisfazer. Uma ligeira adequação basta e o putativo diretor satisfará aqui os ensejos de outros interesses que lhe garantam outros lugares mais centrais. Certamente que não causarão problemas como este.
Acredito que muitas administrações estão profundamente empenhadas nos processos que interrogo e os consideram genuinamente os mais adequados para o sucesso das suas instituições. O problema é que a sua perspetiva empresarial não é compatível com modelos de afirmação cultural mais específicos, os únicos capazes de proporcionar redes com os agentes mais pertinentes e produzir públicos emancipados.
Ironia das ironias será pensar que a exposição de Robert Mapplethorpe poderá ter sido equacionada como um blockbuster do ano... apesar dos custos, aposta ganha.