Pas-de-deux de uma catástrofe anunciada

A Fera na Selva, texto de Marguerite Duras a partir de Henry James, leva até ao palco do CCB, em Lisboa, a sombra de uma ameaça permanente. Uma encenação de Miguel Loureiro que sugere, mas nunca desvenda, qual a forma que a fera tomará.

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Antes sequer de ouvirmos as vozes de John Marcher e de Catherine Bertram, Marguerite Duras vai avisando no prólogo de A Fera na Selva que John “dir-se-ia desconcertado pela multidão dos convivas e ao mesmo tempo empolgado pela riqueza das tradições” naquele fim de tarde outonal, de tempo ameno e a pedir recolhimento no palácio inglês, longe da urbe, que testemunha a festa e, mais importante do que isso, o encontro entre John e Catherine. Quando, enfim, ouvimos John e Catherine, não os vemos ainda. Duras rouba-nos a sua imagem, como se nos avisasse de que muito ficará por ver, enquanto os dois discutem um retrato do quarto marquês de Weatherend, pintado por Van Dyck, que a autora classifica como “uma espécie de duplo de John Marcher”. E é um duplo de Marcher precisamente porque permanece invisível. Tudo o que se seguirá em A Fera da Selva manterá esse nível de opacidade e de estranheza.

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Antes sequer de ouvirmos as vozes de John Marcher e de Catherine Bertram, Marguerite Duras vai avisando no prólogo de A Fera na Selva que John “dir-se-ia desconcertado pela multidão dos convivas e ao mesmo tempo empolgado pela riqueza das tradições” naquele fim de tarde outonal, de tempo ameno e a pedir recolhimento no palácio inglês, longe da urbe, que testemunha a festa e, mais importante do que isso, o encontro entre John e Catherine. Quando, enfim, ouvimos John e Catherine, não os vemos ainda. Duras rouba-nos a sua imagem, como se nos avisasse de que muito ficará por ver, enquanto os dois discutem um retrato do quarto marquês de Weatherend, pintado por Van Dyck, que a autora classifica como “uma espécie de duplo de John Marcher”. E é um duplo de Marcher precisamente porque permanece invisível. Tudo o que se seguirá em A Fera da Selva manterá esse nível de opacidade e de estranheza.

Catherine sugere que a atracção evidente de John pelo quadro do marquês poderá justificar-se pelo facto de este corresponder “ao tipo de homem que John gostaria de ter sido”. E isto porque, apesar da vergonha e do embaraço que as posições políticas do marquês terão causado à família, “nada o desviou, jamais, do que afirmava ser o seu destino”. Pois Marcher, ao invés do marquês, é um homem aprisionado, atormentado por essa fera que habita o título da peça de Duras – escrita a partir de uma novela de Henry James –, esse acontecimento indizível, esse advento por que deve esperar. É algo que Marcher sabe ter o potencial devastador de arruinar a sua vida à chegada, algo que o mantém em alerta permanente, mas que o impede também de viver. Sabe que a catástrofe se faz anunciar, sabe que terá de se confrontar com essa deflagração que tudo mudará. Só ignora quando e sob que forma virá.

De certa forma, John Marcher é também um duplo do tenente Giovanni Drogo, personagem entalhada pelo escritor italiano Dino Buzzati, que, em 1940, criou em O Deserto dos Tártaros um romance prodigioso em torno deste homem. Mobilizado para o remoto Forte Bastiani, Drogo gasta a sua vida na espera pelo previsível ataque do inimigo. A indefinição do objecto da espera de John Marcher é também aquilo que seduz Miguel Loureiro, encenador do texto de Duras nesta apresentação que tem lugar no Centro Cultural de Belém, de 4 a 6 de Outubro. “O que acaba por ser brilhante neste pas-de-deux é eles não nomearem as coisas”, diz ao Ípsilon.

A tentativa de arranjar um nome e uma forma para “a fera” falha, aliás, quando Catherine sugere que poderia tratar-se do amor. John, que chegou também a acreditar que seria essa a catástrofe para que estava guardado, descreve o período amoroso que atravessou como “maravilhoso e deprimente”, embora “nunca extraordinário nem estranho”. “Não era aquilo que há-de ser a minha aventura”, conclui. Daí que o encenador defenda que todas as hipóteses “são sempre esquemas de aproximação ao que poderá realmente ser”, sugerindo, ainda assim, a leitura irresistível de a fera poder ser sinónimo do arrependimento. Um arrependimento com a dimensão do narcisismo de John – tão desmedido que o impede de ver, à medida que avançamos nos seis curtos quadros em que se divide a peça, Catherine a escapar-se-lhe e a minguar à sua frente.

Se a morte vai rondando de forma cada vez mais insistente a peça, para Miguel Loureiro é sobretudo a estranheza e a “forma não regulamentada aos estímulos de cada um” que lhe interessa explorar. “Por vezes”, exemplifica, “ele responde com uma violência psíquica extrema a coisas que são mais simples, há um desencontro absoluto entre os dois. E a escrita da Duras parece pô-lo, nalguns momentos, numa figura de homem desavisado perante os sinais todos.” Por isso, revela, pediu ao actor Filipe Duarte (John) que defendesse a postura contrária, de “alguém atormentado, com os seus próprios fantasmas, que chega a apaixonar-se pelas suas argumentações e que deixa de conseguir ver a Catherine nesses momentos”.

A paisagem no rosto

Por ter em mãos um ambiente de ansiedade psicológica e algo velado, Miguel Loureiro quis escolher como parelha dois actores que pudessem carregar no rosto muito daquilo que as palavras não dizem. Ou seja, dois actores que estivessem habituados ao registo de cinema, a preencher com a expressão os intervalos entre as falas. Em Filipe Duarte admirava o “trabalho sobre a contenção – é muito elegante na forma de dizer e tem qualquer coisa de sombrio que espelhava o jogo de ocultação que existe no John Marcher”; em Margarida Marinho sabia encontrar um das actrizes “que permitem mais toponímia”, o que equivale a falar de amplitude de actuação.

Essa importância que Miguel Loureiro atribuiu aos rostos desde o primeiro momento – quando Fernando Luís Sampaio, do CCB, o desafiou a escolher entre o texto de Duras e Balada do Café Triste, de Carson McCullers, tendo vencido tanto a natureza “muito mais misteriosa” da autora francesa como a devoção que tem pela obra literária de Henry James – resulta também de “uma espécie de herança cinematográfica” que o encenador invoca a partir dos planos de rosto da filmografia da própria Duras e da sua colaboração com Peter Brook em Moderato Cantabile. E depois, acrescenta, tal “capacidade de inscrição de paisagem no rosto através só do texto” garantia-lhe que teria actores feitos não de malabarismo, mas de intensidade.

Depois de Um Diário de Preces, em que dirigiu Isabel Abreu na oratória de Flannery O’Connor, Loureiro regressa ao CCB com outro exemplo de espectáculo em que o peso se abate sobre a palavra e sobre a densidade do ambiente. A Fera na Selva é um huis clos em seis quadros, uma peça cercada sempre pela sensação de ameaça iminente, por uma presença predatória oculta mas de olhos postos na presa e à espera do momento certo para atacar. O texto de Duras mantém-se sempre nesse medo paralisante de um ser, uma entidade ou um acontecimento que pode arrasar a vida de uma só golfada.

A preparação do espectáculo levou Miguel Loureiro a reler a biografia de Duras e a encantar-se com a descrição da Cochinchina, onde a escritora nasceu e viveu a sua infância, em que fala “do som das feras à volta, de se sentir sozinha com a mãe – que está sempre a tentar  reconstruir o idílio” –, algo ecoado em Barragem Contra o Pacífico. A esse relato de Duras, o encenador foi buscar as únicas palavras exteriores convocadas para a peça, que recuam na memória dessa insegurança e dizem algo como: “Estou quase a dormir mas sinto o barulho das feras, não consigo adormecer.” Não fosse – não vá – alguma desgraça colocar-se em posição de ataque.