Há desculpa para a violação de uma mulher?
É uma das principais características da “cultura da violação”: a culpabilização da vítima. Como é que a vítima, inconsciente, conseguiu seduzir os agressores para haver “sedução mútua”?
A “cultura da violação” continua a ser uma expressão que continua a provocar uma tremenda negação naqueles que a ouvem. Este conceito pode ser definido como um acto de violência sexual que é sistematicamente tolerado. Mas como é que é possível haver ocorrências destas? Em pleno século XXI, onde já se caminhou tanto em prol dos direitos das mulheres?
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A “cultura da violação” continua a ser uma expressão que continua a provocar uma tremenda negação naqueles que a ouvem. Este conceito pode ser definido como um acto de violência sexual que é sistematicamente tolerado. Mas como é que é possível haver ocorrências destas? Em pleno século XXI, onde já se caminhou tanto em prol dos direitos das mulheres?
Uma mulher foi violada numa discoteca por dois funcionários quando estava inconsciente e a postura passiva da justiça nacional, após suspender a pena de quatro anos e meio, revela que o acto não passou de “sedução mútua” e de uma “ocasionalidade”, visto que os arguidos são cidadãos de bem a nível familiar e profissional e, por essa razão, não foi um crime, mas sim um “deslize”. Esta é uma das principais características da “cultura da violação”: a culpabilização da vítima. Como é que a vítima, totalmente inconsciente, conseguiu seduzir os agressores para haver uma “sedução mútua”? Será que ao cair mostrou pele a mais e, por isso, estava mesmo a pedir para ser violada?
É notório que a vítima não tinha qualquer força para se defender perante a situação a que foi sujeita — se estava inconsciente é de senso comum que qualquer consentimento é inexistente, logo, se não há consentimento, há crime. Independentemente da quantidade de álcool que ingeriu, da forma como se maquilhou ou dançou, quer tenha sorrido para um dos agressores anteriormente ou não, se vestia uma saia ou um vestido, não há desculpa possível para atenuar um caso como este. Um corpo divertido, e principalmente inconsciente, não é sinónimo de consentimento, não é e nunca foi. É um caso de abuso sexual e tem de haver punição.
Quanto às vítimas, e agora em termos gerais, até essas parecem ter que preencher algumas condições para serem consideradas verdadeiras vítimas. Se não apresentarem danos físicos visíveis ou não mostrarem estar fragilizadas psicologicamente, o pedido legítimo para que seja feita justiça será minorado. A justificação da inexistência de marcas físicas de violência é um excelente mau exemplo das crenças da justiça nacional: como assim ainda era necessário a vítima ter sido violentamente espancada para que este caso de dupla violação fosse considerado crime? Não bastam as sequelas psicológicas que este acontecimento causa?
Se esta é a justiça do país onde vivo e do qual me orgulho por outros motivos, então eu tenho vergonha dessa mesma justiça e, principalmente, medo do que um dia me poderá acontecer quando sair à rua, seja para trabalhar ou para me divertir. É importante salientar que a construção da imagem feminina e masculina no nosso país resulta em decisões desumanas como esta. Um país avançado em muitas matérias, mas ainda muito antiquado em outras, leva à constante desvalorização da violência sexual e do impacto que surge na vítima, o que é completamente inaceitável. Não há desculpa para haver abuso sexual.
Preocupamo-nos com assuntos tão mesquinhos e fazemos deles um bicho-de-sete-cabeças quando há acontecimentos que merecem muito mais atenção. É necessário “dar-lhes voz” para que as mentalidades comecem a mudar e finalmente passe a ser feita justiça. Já por isso vivemos em democracia e num país com liberdade de expressão. As vozes dos cidadãos precisam de ser ouvidas. A mudança começa em nós. Aconteceu a esta vítima, mas podia ser qualquer um de nós.