“Tudo o que se passa na Turquia é espelhado na Alemanha”

Nas zonas turcas de Berlim vê-se “a cada minuto o que se passa na Turquia – mas de forma ainda mais forte e radical”, explica a realizadora e actriz de origem curda Nuray Sahin, a propósito da visita a Berlim do Presidente Recep Erdogan.

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REUTERS/Fabrizio Bensch/Arquivo

Nuray Sahin, realizadora, argumentista e actriz de origem curda, gostava de dizer que o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, lhe é indiferente, que o que se passa na Turquia lhe é indiferente. Mas não consegue, porque interfere na sua vida, em Berlim. Sahin morava em Kreuzberg, uma zona com grande presença turca. “Mudei-me para Mitte”, diz. “Já não aguentava, era demasiado stressante.”

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Nuray Sahin, realizadora, argumentista e actriz de origem curda, gostava de dizer que o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, lhe é indiferente, que o que se passa na Turquia lhe é indiferente. Mas não consegue, porque interfere na sua vida, em Berlim. Sahin morava em Kreuzberg, uma zona com grande presença turca. “Mudei-me para Mitte”, diz. “Já não aguentava, era demasiado stressante.”

Porquê? Porque com Erdogan no poder na Turquia, os turcos mudaram, à imagem do líder – e não só na Turquia, na Alemanha também. “A comunidade turca [na Alemanha] tornou-se muito conservadora.” E agora, o que espera da visita de Erdogan a Berlim? “Agora talvez vejamos como é que as coisas vão continuar.”

Esta mudança na comunidade turca na Alemanha começou aos poucos desde que Erdogan chegou ao poder (em 2003 foi eleito primeiro-ministro), mas nos últimos anos “tornou-se mais radical”. Por exemplo: “Antes, era raro ver raparigas jovens de hijab, agora vejo muitas, muitas, algumas muito novas. Não percebo.”

A política turca também invadiu a sua vida pessoal de outros modos. “Zanguei-me com uma das minhas melhores amigas porque ela considera que Erdogan é o máximo. Ela nasceu cá. Disse-lhe: 'Tu estudaste cá, trabalhas cá, tens apoios sociais de cá, como podes dizer que a Alemanha é uma porcaria e que o Erdogan é que é bom?'”, lembra. “Já rompi com muitas pessoas e há muitas pessoas com quem não falo de política. Já não tenho paciência, não tem piada nenhuma”.

Porque não há nuances, lamenta. “As pessoas que apoiam Erdogan parecem acometidas por um vírus! Não ouvem nada, não aceitam nada: não podemos dizer que Erodgan tenha feito algo de mau. Também não conseguem ver que outros partidos tenham um lado bom: é tudo uma porcaria – excepto Erdogan”.

Nuray Sahin tenta explicar melhor: “Eu vivo aqui, o meu ponto de referência é a Alemanha. Gostaria que quem cá vive soubesse apreciar a democracia. Para a Turquia, desejo que acabe por ser levada de novo a democracia.”

Quanto a si pópria, Nuray Sahin tem cidadania alemã desde cerca de 2000, mas isso para ela não é importante. “É uma formalidade – se vivesse noutro lado seria de outro lado, é-me um pouco indiferente. Se vivesse em França seria francesa, se vivesse em Portugal seria portuguesa.”

A revolta dos discriminados

Muitos dos que vivem na Alemanha, e mesmo os que nasceram na Alemanha, que são muitas vezes discriminados, justificam o apoio a Erdogan como vindo do orgulho que o Presidente projecta no ser-se turco. “Claro que há problemas, há pessoas que não se sentem em casa, que não se sentem alemãs”, diz Nuray Sahin. “Vivi em França e pelo menos lá as pessoas sentem-se francesas. Aqui não somos aceites como alemães, há sempre esta conversa de ‘turcos-alemães’...”

Antes, perguntavam à acrtis e realizadora porque não usava lenço a cobrir a cabeça. Agora menos: “Penso que os turcos já não são tão vistos como um grande grupo uniforme.”

Na Alemanha, opina, os políticos cometeram um erro durante décadas: desvalorizaram, até apoiaram, “os fundamentalistas”. Agora, claro, “não podem vir dizer: tu, tira o lenço”. Nuray Sahin pertence a um grupo de mulheres que debate estas questões. “Pensámos muito no que poderiamos fazer. Para mim, há uma coisa que se podia fazer já, sem ter de se pensar muito: proibir o lenço em miúdas de cinco anos que estão no infantário, ou de sete que estão na escola primária. Miúdas tão pequenas não podem subir a árvores, não podem nadar. Por mim, começava-se por aí.”

A actriz e realizadora aponta outra razão para o aumento dos lenços das turcas nas ruas de Berlim: “Há quem tenha benefícios económicos, tanto lá como cá – se usarem lenço podem conseguir um emprego melhor, ou avançar na carreira”. Perante a estranheza que esta afirmação provoca (afinal, muitas mulheres de lenço queixam-se de ser discriminadas na Alemanha) comenta: “Sim, é estranho. Estas pessoas vivem aqui, mas encaixam-se como se estivessem na Turquia”.

“Tudo o que se passa na Turquia é espelhado aqui na Alemanha. Não posso dizer que me é indiferente o que se passa lá, porque se passa aqui em paralelo. Em Kreuzberg podemos ver a cada minuto o que se passa na Turquia – mas aqui de forma ainda mais forte, aqui são mais radicais", diz. E concluiu: "Hoje já não me imagino a viver na Turquia, apesar de lá estar a minha família. Antes pensava nessa possibilidade, mas agora já não. Agora penso em Portugal, ou na Grécia. Mas na Turquia não".