O Nordeste já não é assim tanto de Lula, Bolsonaro deu-lhe uma dentada

As sondagens dizem que as regiões mais pobres do Brasil são um reduto contra o avanço eleitoral do candidato de extrema-direita. Mas até esta muralha dá sinais de abrir algumas brechas, por causa do sentimento de insegurança e do conservadorismo social.

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55.038 pessoas ainda vivem na pobreza extrema em Fortaleza Manuel Roberto

Foi João Vítor que puxou a conversa. “E quem está no Governo de Portugal agora?”, perguntou. Ficou chocado quando soube que é um partido de esquerda, apoiado por comunistas. “O que se está a passar na Venezuela, e em Cuba! Tem-se medo.” Este empregado de mesa de Fortaleza, de 21 anos, de rosto bonito, com feições bem desenhadas, olhos brilhantes, tem as ideias muito claras. Para ele, o Nordeste não é Lula, como dizem as sondagens e os analistas políticos. “Sou muito conservador. Vou votar Bolsonaro”, diz com um sorriso.

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Foi João Vítor que puxou a conversa. “E quem está no Governo de Portugal agora?”, perguntou. Ficou chocado quando soube que é um partido de esquerda, apoiado por comunistas. “O que se está a passar na Venezuela, e em Cuba! Tem-se medo.” Este empregado de mesa de Fortaleza, de 21 anos, de rosto bonito, com feições bem desenhadas, olhos brilhantes, tem as ideias muito claras. Para ele, o Nordeste não é Lula, como dizem as sondagens e os analistas políticos. “Sou muito conservador. Vou votar Bolsonaro”, diz com um sorriso.

Ele não é caso único, digam lá o que disserem as sondagens – que mostraram Fernando Haddad a disparar nas intenções de voto, depois de ter assumido a candidatura à presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quando não restava mais nenhuma hipótese a Lula da Silva, o “candidato presidiário”, como é tratado, desdenhosamente, nos media que fazem uma descarada campanha antipetista. A sondagem Ibope de 18 de Setembro dá 31% das intenções de voto a Haddad no Nordeste, contra 17% para Jair Bolsonaro.

“Ainda cogitei votar Ciro [Gomes, candidato pelo Partido Democrático Trabalhista, ex-presidente da Câmara de Fortaleza e ex-governador do estado do Ceará]. Mas ele um dia diz uma coisa e no outro diz o contrário”, declara Gabriel Amaral, outro jovem cearense, motorista ao serviço de uma das várias aplicações que concorrem com os táxis nos meios urbanos. “Chegou a dizer que ia arrombar a cadeia para tirar o Lula de lá, quando antes disse que ele devia ser preso. É muito inconsequente.”

Os amigos de Gabriel estão muito divididos, metade vai votar Ciro, metade Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita que lidera as sondagens para a primeira volta das presidenciais no Brasil, a 7 de Outubro.

Uma conversa aqui e ali não é uma amostra representativa de como vai votar Fortaleza, e muito menos os 6,3 milhões de eleitores deste estado brasileiro que podem – e devem, pois o voto é obrigatório – escolher o próximo Presidente. Mas os dois cearenses mais jovens com quem o PÚBLICO falou optaram pelo capitão do Exército na reserva que promete mais violência para lidar com a violência urbana e o crime, e que fala de forma elogiosa da ditadura militar. Talvez por isso a campanha de Bolsonaro tenha anunciado que vai reforçar a campanha no Nordeste.

“Ditadura é na Venezuela”

“Golpe? Não houve golpe, houve uma sucessão de governos liderados por militares, não houve ditadura. Ditadura é na Venezuela, onde os opositores ao Governo são presos”, diz Gabriel Amaral. Mas no Brasil também foram presas pessoas, dizemos. “Foram presas não por serem opositoras, foi por outras coisas. Dilma [Rousseff] foi presa, porque era de uma organização comunista”, responde, a conduzir na hora de ponta no seu regresso a casa em Fortaleza, no bairro de Benfica.

Só que ser comunista não é crime. “Mas quando as pessoas fazem certas coisas é crime”, diz, disparado. “O primeiro marido dela desviou um avião”, diz, recordando o sequestro do voo 114, a 1 de Janeiro de 1970, por membros da organização VAR-Palmares, que pegou em armas para combater a ditadura. A operação foi planeada por Cláudio Galeno Linhares, o primeiro marido da ex-Presidente do PT – nessa altura já estavam separados.

Este discurso repete ideias que circulam na Internet, nas redes sociais e também propagadas por figuras de autoridade. Como Olavo de Carvalho, um filósofo de direita, que vive há anos nos Estados Unidos, mas faz vídeos de sapiência regularmente, dá aulas online e é apoiante declarado de Bolsonaro, que João Vítor admite ser uma grande inspiração para si, depois de se puxar um bocadinho por ele para percebermos onde foi buscar ideias complicadas sobre Che Guevara e Mao Tsetung, modelos um pouco desactualizados para a discussão dos problemas da sociedade  actual.

“Aqui no Brasil Olavo de Carvalho é considerado um ignorante, porque é de direita, mas nos EUA é muito respeitado”, diz João Vítor.

Carvalho é uma voz que inspira a nova direita brasileira, e muito ouvida pelos eleitores de Jair Bolsonaro – cujo eleitorado tem um elevado grau de fidelização. Assim, cerca de 70% dos que manifestam a intenção de votar nele dizem que não votarão noutro candidato e que não vão mudar de ideias.

“Sou muito conservador. Sou cristão, bíblico, muito baseado nas escrituras, seguindo a reforma protestante”, diz João Vítor para explicar o seu posicionamento. A sua mãe “é cristã, de direita”. Os irmãos “não entendem”, mas ele diz que lhes vai explicando. O seu percurso de estudo, de aprofundamento do pensamento crítico, levou-o por caminhos inesperados, fora do que os analistas políticos dizem ser o pensamento da população do Ceará.

Falta de segurança

João Carlos, que trabalha na área dos serviços públicos, tem muitos mais anos de experiência, está mais de acordo com o retrato traçado pelos institutos de sondagem. “Sei que vou votar para reeleger o governador Camilo Santana, que tem tido uma grande actividade”, diz. Para a presidência, anda a deixar-se convencer pela filha, assistente social, a votar em Fernando Haddad. “Sei quem ele é, antes votei no Lula, e na Dilma. Mas ainda tenho de ver”, diz, sem se descoser muito.

A sua preocupação é com a segurança, ou falta dela. A guerra entre os dois grandes gangues do crime do Brasil – o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital – tem ramificações brutais no Ceará, por causa do controlo do mercado do narcotráfico e do tráfico de armas. Cada uma das facções associou-se a sindicatos locais de crime e as disputas entre eles, por território e negócios, resulta numa grande violência, a que se junta a repressão policial.

A violência, e a falta de soluções para esses problemas, é o que leva Gabriel Amaral a escolher Bolsonaro. “Ele é o único que sempre se manteve igual, firme em questões de segurança”, diz. “Já fui assaltado cinco vezes. Uma vez tive uma situação complicada. Não era para assaltar, mas em certas zonas as facções exigem que todo o mundo ande com os vidros para baixo, e os motociclistas sem capacete, para verem a cara das pessoas”, explica.

Os novos bandeirantes

Em ruas movimentadas, há gente parada com grandes bandeiras a fazer propaganda a candidatos – não necessariamente a Haddad, ou Bolsonaro ou outro candidato presidencial, mas aos muitos que se candidatam a deputados federais, estaduais, a senador. A poucos dias das eleições, muitos dizem não ter pensado ainda em quem vão votar, ou que não conhecem os candidatos. Normalmente, conhecem apenas os candidatos à presidência e à governação do estado.

O uniforme desta “bandeirante” inclui uma camisola roxa desportiva, que protege dos efeitos do sol, como as dos ciclistas. Pediu autorização ao seu coordenador para falar ao PÚBLICO – pode fazê-lo desde que não diga o nome nem identifique o candidato para o qual está a trabalhar, que, no entanto, está escrito em letras garrafais na bandeira que leva, espetada na divisória da estrada em frente à catedral de Fortaleza. “Estava sem trabalho e apareceu esta oportunidade, é melhor do que ficar em casa sem ganhar nada. Mas não é a primeira vez que trabalho bandeirando”, diz.

Explica que trabalha seis horas por dia, e vai rodando de bairro em bairro. E vai votar no candidato para o qual faz campanha? “Ele deu-me uma oportunidade, por isso vou votar nele.” O candidato em causa é de direita e votou pela destituição de Dilma Rousseff, e esta “bandeirante” votou em Dilma Rousseff nas anteriores eleições. “Mas ser contrata pelo meu patrão e votar noutro seria covardia – embora o ser humano seja covarde”, diz. “Não o conheço, mas parece ter feito muito pelo Ceará”, explica.

Aqui, no centro de Fortaleza, estamos numa zona de comércio tradicional. Algumas ruas parecem tomadas de assalto por lojas de venda a retalho e revenda grossista de roupas, sobretudo de mulher. A esmagadora maioria é roupa barata, muita dela sintética, apesar de o Ceará produzir bom algodão. Parece que houve como que uma explosão de saias, corpetes, calções, biquínis, blusas... e há música a sair de vários altifalantes, a gritar por todos os lados. É um festival de apelo ao consumo.

Mas nesta aparente abundância – o que não quer dizer riqueza – encontram-se muitos sinais de pobreza. Há pedintes. E famílias, com crianças de ar cansado e muita tralha, na rua. Não estão a pedir, mas estão em movimento, sem um pouso certo. Há alguns sem-abrigo – num número que já faz com que se tornem notados. E a maioria está em muito más condições.

Ainda assim, foi notícia celebrada neste Verão o facto de Fortaleza ter sido a capital estadual que teve a maior redução da pobreza extrema em 2017: saíram dessa categoria 60.579 pessoas no ano passado, uma redução de 52,3%, noticiava o jornal O Povo em Junho. Nesse mês, ainda eram 55.038 os que viviam em pobreza extrema. À saída das estações de autocarros estão muitas dessas pessoas. Numa das paragens da Rodoviária, uma senhora idosa, deitada no chão, muito suja e maltratada, tentava chamar as pessoas que esperavam o autocarro para comprarem amendoins torrados – sem sucesso.

“Não voto em ninguém”

“Só Deus não engana”, diz Marco, vendedor de chapéus há 20 anos na Avenida Beira-Mar, no aterro da praia de Iracema, que garante que o seu boletim de voto vai ficar em branco.

“Vou lá, mas não voto em ninguém. Se tantos roubaram, se devolvessem o que roubaram, não ficava tudo bem? Porque é que não fazem isso? Estou farto desta gente”, diz, puxando a potencial cliente para uma das poucas sombras do calçadão, para o momento de conversa, enquanto mostra os chapéus – panamás, chapéus em fibra de coco, em pano com padrão de camuflado, outros mais redondos, uns de estilo caipira em pele. Foi arrematado o de fibra de coco, que o sol estava inclemente e a pino.

Uns metros à frente, está um quiosque com a frase “evangelho da beira-mar”. O que é aquilo? “São umas pessoas que vêm ajudar os sem-abrigo que vivem perto da praia. Todos os dias têm três panelões de sopa à noite, nunca falharam. E ao fim-de-semana dão evangelho também”, explica um angariador de clientes para uma das muitas barraquinhas de comes e bebes que há em cima da linha da areia.

Peixe, churrasco, bolinhas de queijo, de camarão, de carne de sol, água de coco, cerveja. Tudo para o lazer do turista. O problema é que quase não há turistas, ou veraneantes. Talvez seja da hora – são duas da tarde, faz um calor infernal, chora-se por uma sombra, um ar condicionado. Má ideia ter vindo para aqui!

Mas depois olha-se bem e na esplanada da barraquinha da praia não se está assim tão bem. Há lixo na linha junto à areia, o cheiro a podre incomoda. Vai-se procurar explicações: dizem-nos que a zona da praia de Iracema está decadente, fecharam cafés e bares históricos, há droga, reforçaram o policiamento, fala-se em assaltos. 

Os problemas de Fortaleza chegaram à praia de Iracema. E à zona do centro cultural Dragão do Mar, que não é assim tão distante, e que era um ex-líbris da cidade.

“Eu não vou votar em ninguém! Vou lá, mas inutilizo o boletim!”, assegura outro residente, Francisco. “Sabe quantos impostos pagamos no Brasil? São 65! Pela quantidade devíamos ter uma qualidade de vida óptima! E é isto”, desabafa. Nas últimas presidenciais, votou em Dilma Rousseff.