Helena Almeida e o gesto infinito
Depoimentos de curadores, historiadores e académicos ligados à história da arte sobre a obra e o legado artístico de Helena Almeida (1934-2018).
“É como se ela estivesse a fazer uma performance constantemente”
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“É como se ela estivesse a fazer uma performance constantemente”
Bernardo Pinto de Almeida, ensaísta, historiador de arte e professor catedrático da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
“A obra de Helena Almeida é uma daquelas em que a arte portuguesa do Século XX está ao nível da arte internacional. Situação que é rara, porque não há assim tantos grandes artistas portugueses no Século XX. Num século começado por Amadeo de Souza-Cardoso, o Século XX é aquele em que a arte portuguesa procurou dialogar com a arte internacional e a obra de Helena Almeida é com certeza um dos marcos desse percurso, que ainda está em construção, por menoridade institucional, cultural e cívica portuguesas, porque não há outras razões que expliquem um afastamento tão grande entre a realidade portuguesa e a realidade internacional.
Helena Almeida é também um caso exemplar porque era mais difícil ser mulher e ser artista em Portugal no tempo em que ela começou a sê-lo. Mas, não é por isto que ela é grande – ela é grande, porque é grande. Isto é, a obra que ela fez tem uma enorme qualidade de invenção plástica e de compreensão de um contexto extremamente complexo como o é o da arte internacional, em relação ao qual se colocava ao mesmo nível, sem jamais copiar.
Logo no princípio da carreira [no final dos anos 60], Helena Almeida começa a pintar e a utilizar o lado oposto das telas e, por outro lado, começa a trabalhar com fotografia, num momento em que esta entra em força no campo artístico. Ela consegue passar a invenção da sua obra para um registo extremamente singular e original, no atravessamento de fronteiras entre pintura e fotografia, porque a fotografia dela é sempre pintada e a pintura dela decorre sempre de uma compreensão do fotográfico – ela inventa um espaço de uma enorme riqueza e de uma enorme singularidade do ponto de vista conceptual, situando a sua obra numa densidade que prolongou até ao fim. Mesmo nas últimas séries, ela continuava a inventar dentro desse espaço. Aquele espaço era dela. Ninguém fez aquilo que ela fez. Há outros artistas a trabalhar esta dimensão [do corpo], mas ninguém o fez da mesma maneira.
Em parte, esta singularidade ajuda a explicar o enorme reconhecimento internacional que veio a alcançar, porque ela não é parecida com nada. Por um lado, Helena Almeida construiu uma obra de uma significação altíssima e, por outro, de uma invenção e de uma surpresa permanentes. Defendi no ensaio que escrevi sobre a sua obra [para a retrospectiva em Serralves, em 2015] que Helena Almeida soube jogar nesse espaço indiferenciado entre pintura e fotografia, que se abriu na arte e que gerou as formas do contemporâneo em que ela participa activamente, ao mesmo tempo inscrevendo uma qualidade de performance que é muito particular. Isto é, ela não só se representa dentro das suas telas, das suas pinturas, das suas fotografias, ou melhor dentro das suas imagens de uma maneira performativa – é sempre o corpo dela – como faz de toda a obra um registo performativo. É como se ela estivesse a fazer uma performance constantemente. A sua obra reporta essa dimensão performativa, não apenas na presença do corpo, como o facto de esse corpo ser sujeito à vicissitude do tempo. E isto é de uma enorme singularidade, de uma enorme inteligência plástica.”
“[A obra de Helena Almeida] é uma profunda investigação sobre a ideia de pintura”
Pedro Lapa, curador e ex-director artístico do Museu Colecção Berardo e do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
“Helena Almeida era uma fantástica artista, uma das maiores do século XX português. Quando se olha para as neo-vanguardas em Portugal, a revisão dos legados das vanguardas históricas e das suas redefinições na segunda metade do século XX é um dos nomes principais. Ela e Alberto Carneiro são dois nomes fundamentais na profunda transformação que arte portuguesa sofre nos anos 70.
O trabalho de Helena Almeida é muito peculiar. É uma profunda investigação sobre a ideia de pintura, apesar de maioritariamente utilizar a fotografia, do gesto que acompanha a pintura – gesto esse que não cabe dentro da pintura e por isso tem de ser fotografado. Uma investigação também acerca do corpo e a sua projecção, do corpo como agente de significação e signo. Tudo isto envolvido de uma forma extremamente consequente, profunda e numa linguagem única em termos internacionais. É um percurso muito particular e de uma relevância extrema. Só é pena que o trabalho de Helena Almeida se tenha começado a desenvolver num contexto português tão depauperado, nos anos 60, 70, sem grande viabilidade de internacionalização. Felizmente, ao longo das últimas décadas essa internacionalização veio a concretizar-se valorizando um trabalho que é realmente fundamental na história da arte portuguesa e não só. É uma artista que foi conquistando o seu espaço internacionalmente e, de uma forma muito sólida, um reconhecimento feito já retrospectivamente, o que é também muito significativo do valor e da solidez da sua proposta.
“Houve uma espécie de levantar voo em relação à pintura e ao desenho tradicionais”
Alexandre Melo, historiador, crítico e professor de História da Arte
Helena Almeida é um dos nomes mais importantes da arte portuguesa, não só da última metade do século XX, como da transição do século XX para o XXI. Acompanhei o trabalho dela, primeiro como visitante de galerias e depois como crítico de arte desde os anos 70. É uma das artistas que nesse período de experiências vanguardistas deram as contribuições mais originais e mais marcantes desse período.
Depois da primeira metade dos anos 70, houve um período em que a recepção da sua obra foi menos entusiástica do que poderia ter sido, mas ao longo dos últimos 20 anos a obra voltou à ribalta, voltou a ganhar protagonismo, como uma das mais importantes não só do panorama português como também no panorama internacional. É uma artista que nos últimos anos, através de exposições e integração de trabalhos seus em colecções, foi recuperada como um nome de referência em tudo o que diz respeito a questões relacionadas com identidade, auto-representação, corpo, transdisciplinaridade.
Há na obra de Helena Almeida uma originalidade e um fôlego criativo e experimentalista, não no sentido mais espectacular, mas, pelo contrário, no sentido da obstinação da exploração de uma determinada linha muito específica, e pessoal, que se mantém sempre. Haverá momentos mais fracos e mais fortes, mas isso não só depende da avaliação de cada um, como muitas vezes varia com a própria história. Ou seja, também há uma história da recepção das obras.
O que é inegável é a marca autoral que deixa a obra de Helena Almeida que é de uma constante reinvenção dentro de uma linha de trabalho muito própria.
Vi ainda o momento em que Helena Almeida expunha pintura e depois as pinturas e os desenhos que se soltavam do seu suporte. No fundo, vi essa libertação, diria que houve uma espécie de levantar voo em relação à pintura e ao desenho tradicionais. A fotografia foi o meio privilegiado na maior parte do seu trajecto, mas há um aspecto interessante que é a relação entre fotografia e performance na própria concepção das imagens. Ou seja, aquelas fotografias pressupõem uma performance, ou uma coreografia ou uma encenação. Acontece que estes gestos eram privados, mas não eram solitários, porque há uma marca muito importante que é a colaboração do marido, Artur Rosa, que qualquer análise profunda da obra de Helena Almeida deve considerar. Artur Rosa é ele próprio um grande artista.”