Morreu Helena Almeida, uma grande artista europeia

Helena Almeida era uma das mais internacionais artistas portuguesas, com um reconhecimento tardio que foi ganhando intensidade. Tinha 84 anos e morreu esta terça-feira à noite em sua casa, inesperadamente. As suas famosas fotografias a preto e branco, em que se faz representar ao longo dos últimos 50 anos, são uma reflexão sobre um corpo que passou a ser de todos nós.

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Somos todos voyeurs do corpo de Helena Almeida, uma das mais originais artistas plásticas do século XX português e “uma grande artista europeia”, que morreu esta terça-feira, inesperadamente, na sua casa de fim-de-semana em Sintra, aos 84 anos.

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Somos todos voyeurs do corpo de Helena Almeida, uma das mais originais artistas plásticas do século XX português e “uma grande artista europeia”, que morreu esta terça-feira, inesperadamente, na sua casa de fim-de-semana em Sintra, aos 84 anos.

Por isso, ao olharmos para os seus últimos trabalhos, alguns deles feitos ainda este ano e agora expostos na Galeria Helga de Alvear, em Madrid, não conseguimos deixar de ver o seu desaparecimento.

Numa destas fotografias a preto e branco Helena Almeida está caída no chão, com o rosto oculto pelo cabelo, por detrás de uma cadeira com uma trave pintada de vermelho.

Noutra imagem, a mesma tinta vermelha sai-lhe agora de um dos braços e contamina as costas da cadeira, que na iconografia contemporânea representa o espectador, aquele que está a ver. Neste “retrato” frontal — o mais correcto seria chamar-lhe auto-representação —, a cabeça está tapada por uma espécie de saco-véu negro, num apagamento do rosto da artista. É como se Helena Almeida nos estivesse a preparar para a morte, porque, parafraseando a artista, a sua obra é o seu corpo, o seu corpo é a sua obra, uma adaptação que aqui fazemos do título da antológica que o Museu de Arte Contemporânea de Serralves lhe dedicou em 2015, A Minha Obra é o Meu Corpo, o Meu Corpo é a Minha Obra.

O chão em que a vemos caída é o pavimento do seu atelier em Lisboa, no n.º 69 da rua Coelho da Rocha, no bairro de Campo de Ourique. É o atelier que herdou do pai, o escultor Leopoldo de Almeida, que fez o Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, um dos símbolos do Estado Novo. Mas Helena Almeida, nascida em Lisboa em 1934, não é só filha de artista, é também mulher de artista, para não alargar ainda mais os genes ligados à arte que correm na sua família (Helena Almeida é mãe da artista Joana Rosa).

Numa carreira com 50 anos — a primeira exposição individual foi na Galeria Buchholz em 1967 — teve sempre no marido, Artur Rosa, um cúmplice, o seu primeiro espectador, o dedo que fazia o clique para produzir as suas famosas fotografias a preto e branco, onde a artista aparece repetidamente.

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Foi também sobre o chão deste atelier que o curador Delfim Sardo reflectiu em 2004, na grande exposição que lhe dedicou no Centro Cultura de Belém (CCB) nesse ano, intitulada Pés no Chão, Cabeça no Céu, quando o espaço de paredes brancas da Coelho da Rocha começou a ficar mais visível na obra de Helena Almeida. O chão de cimento marcado por uma grelha de quadrados e com um rodapé também ele cinzento, sobre o qual o seu corpo surge nas mais diversas poses.

“Desde que vinha para o atelier ver o meu pai trabalhar, com oito, nove, dez anos”, disse na entrevista ao PÚBLICO no ano da exposição do CCB, “ele aproveitava para eu posar um bocadinho. Eu aproveitava para desenhar. Ia fazendo o que via fazer. O meu pai morreu em 75.” No catálogo da exposição, o curador perguntava, logo a abrir: “Para quem posa esta mulher? Para o homem que, frente a ela, dispara a máquina? Para nós, que assistimos a toda a cena?”

Habitar a pintura

Para a curadora Isabel Carlos, com a morte de Helena Almeida desaparece uma das maiores figuras da arte da segunda metade do século XX, um século que não é só português: “A Helena tem uma obra única que marca a arte contemporânea. E é uma artista que ultrapassou há muito a dimensão nacional. A obra da Helena – a Helena – é verdadeiramente universal.”

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Helena Almeida e Artur Rosa em Maio de 2018 Arquivo Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva

O carácter “único” da obra de Helena Almeida deve-se, diz Isabel Carlos, “ao modo como fez da fotografia uma confluência de linguagens, da pintura à performance, passando pelo desenho”. Em algumas das suas imagens, que resultam sempre de situações encenadas, podemos ver a pincelada azul a sobrepor-se à imagem impressa no papel.

A curadora, que levou o trabalho da artista à bienal de Sydney, não tem dúvidas da “influência poderosa” da sua obra em muitos artistas nem do rasgo que representou. “Tudo na obra da Helena são emoções em estado fotográfico. Ela não é apenas única, tem uma força brutal. Uma força que vem da auto-representação, que ninguém faz como ela.”

Delfim Sardo, que diz que morreu “uma grande artista europeia”, sublinha que o seu percurso teve início na pintura, sendo Tela Rosa para Vestir (1969) a primeira obra em suporte fotográfico, onde decide vestir, literalmente, uma tela. "Lembro-me de fazer um trabalho e pô-lo por cima de mim. Depois fiz uma tela cor-de-rosa e enfiei os braços. Cosi aquilo à máquina. E depois chamei-lhe Tela Rosa para Vestir. O Artur tirou a fotografia. Utilizei o atelier para fotografar pela primeira vez nessa altura. Pareceu-me um gesto impulsivo mas não era. Depois percebi que as telas já pareciam pessoas há muito tempo. Já tinham braços para os lados. Aquilo era como se fosse uma pessoa, como se fosse eu. Foi uma espécie de me 'armar cavaleiro'. Foi um gesto simbólico 'eu sou a pintura, eu vou passar a ser a pintura'", disse-nos na mesma entrevista.

Nos anos seguintes, há obras intituladas Desenho Habitado, Pintura Habitada, Saída Negra. As fotografias são também habitadas por tinta azul, vermelha, branca, e por fio de crina, que ganha uma dimensão escultórica. A metáfora da pintura cedo deixou de ser suficiente para explicar o trabalho de Helena Almeida. "Ela faz um processo de saída da pintura em direcção à fotografia, ficando nós sempre na dúvida se a fotografia é o destino final da obra ou se é o meio que nós temos de aceder a uma performatividade que desenvolveu sempre sem público, excepto o marido."

Helena Almeida, acrescenta Sardo, era uma artista muito complexa, com uma grande sofisticação na abordagem dos temas, que conseguiu ter uma enorme universalidade. "Eu diria que é uma universalidade cada vez mais densa ao longo do tempo, a partir de um processo que parece muito simples, que é a representação de si própria."

Antes da exposição do CCB, em 2004, o curador lembra que Helena Almeida já não expunha em Lisboa há 20 anos, um reflexo do seu reconhecimento tardio enquanto artista, embora a Fundação Gulbenkian, em 1983, e a Fundação de Serralves, com uma retrospectiva em 1995, já lhe tivessem dedicado exposições importantes, bem como o Centro Galego de Arte Contemporânea.

Mas os tempos mais recentes trouxeram "uma grande exposição do seu trabalho": "A antológica que foi feita em Serralves, com curadoria de João Ribas e Marta Moreira de Almeida, que esteve no Jeu de Paume, em Paris, e no WIELS – Centre d’Art Contemporain, em Bruxelas, ou a outra exposição que teve a seguir no AIC (Art Institute of Chicago), nos Estados Unidos. Percebeu-se na circulação internacional destes projectos a importância que o trabalho de Helena Almeida tem no contexto em que ela foi produzindo a partir dos anos 60. É uma artista vibrante com o seu tempo", defendeu Delfim Sardo, neste momento a preparar um livro para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda sobre a artista que actualmente tem trabalhos expostos na Tate Modern, em Londres.

As exposições que lhe foram dedicadas nas últimas décadas em alguns dos mais reputados museus internacionais, bem como a incorporação dos seus trabalhos em importantes colecções institucionais e privadas, dão à obra de Helena Almeida um lugar “referencial” em tudo o que diz respeito a questões relacionadas com identidade, auto-representação, corpo e transdisciplinaridade, sublinha Alexandre Melo, crítico e professor de história de arte. “Há na obra de Helena Almeida uma originalidade e um fôlego criativo e experimentalista – não no sentido mais espectacular do termo, muito pelo contrário, no sentido da obstinação e da exploração de uma determinada linha muito específica e pessoal – que se mantém sempre.”

Delfim Sardo é da opinião que “o seu trabalho mais recente continua a ser absolutamente extraordinário”. A última exposição em Lisboa, cidade onde Helena Almeida nasceu, teve lugar no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, tendo encerrado no início de Setembro. O Outro Casal, nas palavras da directora Marina Bairrão Ruivo, quis mostrar os registos em que aparece com o marido, que se tornaram comuns a partir de 2006. Artur Rosa, arquitecto e escultor, é a outra pessoa que aparece na obra de Helena Almeida. “Foi uma grande emoção receber o casal com uma exposição de obras que revelam a cumplicidade dos dois”, disse Bairrão Ruivo.

“O Artur apaga-se na obra dela, mesmo sendo uma peça fundamental. É um cúmplice extraordinário”, sublinha por seu lado João Fernandes, curador que conheceu Helena Almeida quando a colecção do Museu de Serralves, que veio a dirigir entre 2003 e 2012, dava ainda os primeiros passos e que identifica dois momentos claros na sua obra – o primeiro, em que interroga os géneros artísticos e a possibilidade de trabalhar fora deles; o segundo, em que o recurso à fotografia de situações encenadas se radicaliza.

Representando-se na sua solidão – uma “solidão partilhada” com Artur Rosa –, a autora da célebre série Pintura Habitada foi sempre “irrepreensível” no rigor com que introduziu o corpo na fotografia, congelando nela o tempo, acrescenta Fernandes.

Liberdade imensa

A artista estudou Pintura na Escola Superior de Belas-Artes, em Lisboa, e foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, no final da década de 50. No contexto da arte portuguesa da segunda metade do século XX, Helena Almeida é autora de uma obra de uma “liberdade imensa”, diz Emília Tavares, curadora da colecção de fotografia do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Pertence a uma geração que rompeu com tipologias e soube reinventar-se permanentemente, em acerto com as grandes correntes internacionais. Helena Almeida representou Portugal na Bienal de Veneza por duas ocasiões: em 1982 e em 2005.

“Ela tem uma linguagem de grande originalidade e nunca deixa de renovar o seu próprio conceito artístico, formal”, acrescenta Tavares, defendendo que, no seu caso, não se pode falar de auto-representação, porque essa categoria foi uma das muitas que subverteu, a par das do desenhou ou da pintura. “O trabalho de Helena Almeida é uma tentativa de estar no limiar, de renomear fronteiras e tipologias, questionando categorizações formais. E é isso que faz com que se mantenha muito actual.”

A capacidade de resistir ao tempo é precisamente um dos aspectos que o curador e professor de fotografia Sérgio Mah salienta na obra de Helena Almeida, figura que diz ser central na vaga de artistas que, no final dos anos 60, reage ao legado modernista propondo novas práticas. O outro aspecto é o seu carácter “idiossincrático”, distintivo: “Helena Almeida foi capaz de criar um mundo, de inventar um imaginário que é inimitável.” E para provar que o seu trabalho ocupa um lugar ímpar, sugere compará-lo ao de outras artistas que exploram a auto-representação usando a fotografia. “Basta olhar para o que faz a [norte-americana] Cindy Sherman ou a [cubana] Ana Mendieta. A Helena Almeida é outra coisa – a sua obra tem um pendor poético e emocional muito particular. É só dela.”

Ao contrário da investigadora Emília Tavares, tanto Mah como João Fernandes, curador e subdirector do Museu Rainha Sofia, em Madrid, falam em “auto-representação”, embora com o cuidado de sublinhar que não há nela qualquer conteúdo autobiográfico. “A emotividade que reconhecemos nas suas imagens não é pessoal. Aquelas emoções são humanas. O corpo que vemos na sua obra é a representação do corpo da mulher, não a representação do corpo de Helena Almeida”, diz o primeiro. Fernandes opta por outra formulação, mas com o mesmo sentido: “A Helena representa-se sempre como artista, nunca como mulher no sentido pessoal, de alguém com uma história. Também nunca tentou representar estados psicológicos. O que quis mostrar foi sempre o artista no seu fazer, ou melhor, a mulher-artista no seu fazer.”

O facto de Helena Almeida ter construído o percurso que construiu – com mais de 50 anos, original, desafiador e consistente – a partir dos anos 1960 e num país em que ser artista e mulher estava longe de ser fácil, também é digno de nota. “Ela é dos primeiros artistas em Portugal a trabalhar sem ser em função de géneros artísticos, a trabalhar a partir de ideias, de algo irredutivelmente novo. E isto assumindo-se como artista e como mulher, como mulher-artista.”

O velório está marcado para esta quinta-feira, entre as 19h e as 23h, na Basílica da Estrela, em Lisboa. O funeral decorre sexta-feira também na Basílica da Estrela, com missa de corpo presente a partir das 14h30. O cortejo fúnebre dirigir-se-á depois para o Cemitério dos Prazeres.

com Sérgio B. Gomes

Notícia actualizada com os dados sobre as cerimónias fúnebres às 12h50 de quinta-feira e a sua formação.