“Não há censura nenhuma em Serralves”, diz Pacheco Pereira. “Fui intimado a retirar duas obras”, denuncia João Ribas.

João Ribas acusa a administração de Serralves de “intromissões” na montagem da exposição de Mapplethorpe e de “violação sistemática” da sua “autonomia técnica e artística”. Ana Pinho recusa ter exercido qualquer censura e diz que toda as obras que o ex-director escolheu estão expostas.

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“Foram-me impostas, enquanto director do museu e no contexto da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, restrições e intervenções que criaram um ponto de ruptura em termos de autonomia artística e de uma actividade de programação livre de intromissões ou repreensões”, escreve João Ribas num comunicado intitulado Verdade e Liberdade, com o qual veio finalmente quebrar esta quarta-feira ao final da tarde o persistente silêncio que mantinha desde que anunciou a sua demissão de director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

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“Foram-me impostas, enquanto director do museu e no contexto da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, restrições e intervenções que criaram um ponto de ruptura em termos de autonomia artística e de uma actividade de programação livre de intromissões ou repreensões”, escreve João Ribas num comunicado intitulado Verdade e Liberdade, com o qual veio finalmente quebrar esta quarta-feira ao final da tarde o persistente silêncio que mantinha desde que anunciou a sua demissão de director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

Estas “interferências na exibição de determinadas obras e na localização de outras”, que ocorreram já, diz Ribas, durante a semana de montagem, “contribuíram para uma descontextualização profunda” e obrigaram-no, “enquanto curador, a alterar a selecção dos trabalhos para que a exposição fosse um todo coerente”.  

“O conselho de administração não mandou retirar quaisquer obras da exposição” de Robert Mapplethorpe, tinha dito algumas horas antes Ana Pinho no arranque da conferência de imprensa que a administração de Serralves convocou de manhã para reagir à crise provocada pela saída de João Ribas. A presidente da fundação portuense limitava-se, de resto, a reiterar o que já fora afirmado no domingo pela vice-presidente Isabel Pires de Lima, que na ausência de Ana Pinho, então fora do país, foi a primeira administradora a reagir publicamente ao pedido de demissão do director artístico.

Sustentando que as acusações de que existira uma “interferência” do conselho de administração “no trabalho de programação e curadoria” se desenvolveu com base em “factos e informações falsos”, Ana Pinho e os restantes administradores presentes asseguraram que Ribas escolheu as obras que quis e que foi ele próprio quem sugeriu que o conjunto de imagens mais polémicas ficasse numa zona reservada.

No encontro com os jornalistas, Ana Pinho disse ainda que “todas as fotografias foram escolhidas exclusivamente pelo curador” e atribuiu a João Ribas a decisão de excluir do percurso expositivo 20 imagens que constavam da lista inicial, e acrescentando que essas 20 obras “não justificam qualquer situação de censura”. Uma lista que identifica e reproduz essas peças, e que parece confirmar, pela própria variedade temática dos trabalhos, que os critérios de exclusão terão sido estritamente estéticos, foi distribuída aos jornalistas durante a conferência de imprensa, na qual Ana Pinho se fez acompanhar pelos seus três vice-presidentes – Manuel Ferreira da Silva, Isabel Pires de Lima e Manuel Cavaleiro Brandão –, e ainda por José Pacheco Pereira, um dos dois administradores, juntamente com a ex-ministra da Cultura, indicados pelo Governo.

Uma versão dos acontecimentos que o comunicado de Ribas vem desmentir. O curador confirma que a exposição deveria conter, de facto, 179 obras, mas acrescenta que foram justamente as referidas interferências e restrições que o levaram a “uma redução para 161”. E assegura mesmo que, no próprio dia da inauguração, foi “intimado a retirar duas obras que já se encontravam expostas”.

Ao final da manhã, Ana Pinho sublinhara aos jornalistas: “Em Serralves não há, nem nunca houve, nem nunca, sob a nossa responsabilidade, haverá censura, mas também não haverá complacência com a falta de verdade nem fuga às responsabilidades.” E vários administradores garantiram que a criação de uma zona de acesso reservado para as imagens mais sensíveis foi assumida desde o início com a concordância de João Ribas. Mas as declarações do director sobre “interferências na localização” de obras parecem sugerir que se possa ter visto condicionado na sua escolha das imagens a colocar nesse espaço mais restrito.

“A exposição nunca foi concebida numa lógica proibicionista, o que não se traduz numa insensibilidade para com a comunidade: houve a preocupação de criar mecanismos que permitissem aos visitantes fazer escolhas”, escreve o curador.

A conferência desta manhã de quarta-feira em Serralves serviu também para mostrar que o conselho de administração está totalmente solidário com a sua presidente – as declarações mais enfáticas nessa matéria vieram de José Pacheco Pereira – e ainda para tentar sensibilizar os jornalistas, como o fez Manuel Cavaleiro Brandão, para terem em conta os eventuais danos que esta polémica poderá provocar na reputação internacional do Museu de Serralves.

E sempre que, no breve período reservado a perguntas, algum jornalista tentava abordar questões que não se prendiam estritamente com a exposição de Mapplethorpe, mas poderiam ajudar a perceber o contexto em que João Ribas tomou a sua decisão, Ana Pinho recusava-se a responder, como o fez quando a confrontaram com o facto de 20% da equipa de Serralves ter saído desde que tomou posse, ou quando lhe perguntaram se a programação do museu para 2019 prevê, como chegou a ser anunciado por Serralves num encontro com professores e estudantes, uma exposição de Joana Vasconcelos.

Na entrevista que deu ao Expresso após a demissão de Ribas, Isabel Pires de Lima parece assumir que a exposição está de facto prevista, uma vez que afirma: “O João Ribas não era director do museu quando foram feitos os primeiros contactos [com Joana Vasconcelos]. Era a Suzanne Cotter. O João Ribas nunca se manifestou contra a exposição da Joana Vasconcelos.” Dado que a anterior directora artística garantiu entretanto ao PÚBLICO que não programou qualquer exposição desta artista, embora acrescentando que Joana Vasconcelos a procurara para lhe dizer que gostaria de expor em Serralves, resta saber de quem foi, então, a decisão final. 

Vários dos administradores presentes sublinharam o alegado comportamento contraditório de João Ribas e lembraram que este foi criticado pelo próprio presidente da Fundação Mapplethorpe, Michael Ward Stout, que no sábado afirmou que a demissão do director artístico fora “completamente inapropriada e pouco profissional”. Na mesma ocasião Stout adiantou que Ribas lhe telefonara para o avisar de que iria demitir-se, mas que só o faria no final da exposição, daí a alguns meses. Um telefonema que o director de Serralves presumivelmente terá entendido como privado, já que Ana Pinho garantiu na conferência de imprensa que o ex-director artístico nunca antes a informara de que ponderava demitir-se.

“Não é natural que o curador apresente uma exposição à imprensa e às pessoas, e receba aplausos, sem fazer qualquer referência aos problemas que colocou no dia seguinte”, argumentou Pacheco Pereira. E Cavaleiro Brandão, a propósito da entrevista que Ribas deu ao PÚBLICO uma semana antes de a retrospectiva de Mapplethorpe ser inaugurada em Serralves, acrescentou: “Primeiro toma posições contrárias a tudo quanto tinha proposto e acordado com a administração, e a seguir, sem que pudéssemos prevê-lo, demite-se.”

Reiterando que a decisão de retirar as 20 obras foi de Ribas, e que neste momento a administração nem sequer sabe se o curador terá decidido incluí-las no catálogo da exposição, que ainda não está pronto, Cavaleiro Brandão lamentou as sugestões de que teria havido censura e lançou um apelo directo à imprensa. “Não tenho inibição nenhuma em dizer que conto com os jornalistas portugueses para se preocuparem com o rigor da informação que recolhem e com os comentários que fazem à volta dessa informação, porque este património colectivo foi construído ao longo destas últimas dezenas de anos e é muito fácil desfazê-lo.”

Respondendo a uma questão sobre o pedido, por parte do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, de uma reunião urgente do conselho de fundadores de Serralves, Ana Pinho disse que a sua administração está “totalmente disponível para prestar todos os esclarecimentos e informações” àquele organismo.

Na conferência de imprensa, a presidente de Serralves disse ainda não ter tido até ao momento nenhum contacto com o ministro da Cultura a propósito desta polémica. Ao PÚBLICO, o Ministério da Cultura, um dos fundadores e suportes de Serralves – em 2017, o apoio estatal significou 37,5% do total de rendimentos da fundação –, disse que tem acompanhado o caso desde o primeiro momento, “quer através da informação pública disponível, quer, obviamente, através de vários contactos pessoais e informais que tem mantido ao longo destes dias”.

No final da conferência de imprensa desta quarta-feira, o historiador José Pacheco Pereira foi peremptório na defesa de Ana Pinho: “Nunca vi ninguém na administração defender melhor os interesses de Serralves do que ela.” Falando da sua própria experiência enquanto cidadão que conheceu de perto a censura e que sabe bem o que ela é, acrescentou: “Eu sei o que é censura e em Serralves não houve nenhuma censura.”

João Ribas nunca usa o termo “censura” no seu comunicado, mas justifica assim a sua demissão: “Face à violação continuada da minha autonomia técnica e artística e do livre exercício das minhas funções, e por respeito ao Museu de Serralves enquanto instituição de referência nacional e internacional, não me restou alternativa melhor e mais consentânea com a ética profissional que perfilho senão a demissão de funções.”

Argumentando que “nenhuma direcção artística deve ser alvo de sistemáticas ingerências”, diz ter tomado esta decisão “em defesa dos bons princípios de funcionamento institucional e da liberdade artística” e que só quebrou o silêncio a que se vinha remetendo porque “têm sido divulgadas algumas falsidades e feitas imputações indevidas” aos seus comportamentos profissionais, que sentiu como “calúnias e ofensas” ao seu bom nome.

“Não perdi nem se encontram diminuídas as qualidades que justificaram a minha colocação no cargo de director”, conclui o comunicado.

Com Isabel Salema