O medo de envelhecer estremece a cada mural de Marina Capdevila
São sempre anciãos, sempre nos cenários menos prováveis: num descapotável, sem roupa, em encontros amorosos. Aparecem em murais XL, na casa da avó da ilustradora espanhola ou por paredes em Amesterdão, Brooklyn, Belo Horizonte. E, desde a semana passada, Estarreja, Aveiro.
Quando se imagina a envelhecer, Marina Capdevila pensa e pensa e só se consegue idealizar já “morta”. “É um exagero”, apressa-se a corrigir. “Tal como as personagens nos meus trabalhos o são.”
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Quando se imagina a envelhecer, Marina Capdevila pensa e pensa e só se consegue idealizar já “morta”. “É um exagero”, apressa-se a corrigir. “Tal como as personagens nos meus trabalhos o são.”
A artista espanhola só pinta rostos envelhecidos — mas não é um rosto marcado pelas rugas que a assombra. Aos 33 anos, teme antes a aparente inevitabilidade de outros estados que chegam com o avançar da idade: os dias de solidão; os relatos de abandono; a perda de capacidades, físicas e cognitivas; a dependência a pessoas que, muitas vezes, não querem estar dependentes.
“É muito triste que, nesta sociedade, trabalhes toda a vida, atinjas os teus objectivos e quando ficas velho, desapareces.” Quase como se “passássemos a ‘coisas’ obsoletas”, “inúteis”, que “nem sabem como usar um telemóvel”, imita, com ironia. “E eu tenho muito medo disso.”
A viver em Barcelona, Marina prefere antes imaginar-se a envelhecer “em tribos” onde “os elementos mais velhos são venerados por serem símbolos de sabedoria, que transmitem conhecimentos e dão conselhos às gerações mais novas”.
Foi assim como uma forma de "terapia" que a ilustradora começou a desenhar pessoas idosas. E resultou. Com os murais que já deixou por vários países da Europa e da América do Norte e do Sul, quer deixar esta última fase da vida marcada na arte, onde acredita “estar muito pouco representada” — menos ainda em trabalhos de arte urbana, menos ainda de "uma forma divertida e bonita".
É um brinde (com cerveja, vinho, shots, cocktails, ou todos os anteriores) à terceira idade. Desenha todos os protagonistas seniores a divertirem-se, com amigos ou namorados, activos, ao ar livre, com tatuagens, em descapotáveis, na discoteca, em encontros amorosos, sem roupa. Porque Nunca É Tarde Para Um Primeiro Encontro, como chamou à exposição individual que inaugurou na galeria Miscelanea, em Barcelona, em 2015.
Pintar com ironia
Todas as ilustrações de Marina Capdevila vivem da “ironia” na descontextualização dos comportamentos das personagens, “tipicamente esperados em grupos etários muito mais jovens”. “Tento transportar quem os vê para um espaço temporal distante, desconhecido, onde se pode identificar com as situações representadas”, explica.
Com o que pinta, conseguiu imaginar-se também com outra idade. E começa a gostar do que vê. “Agora, graças a este trabalho, acho que se mantiver uma mente positiva e se tomar conta do meu corpo posso chegar a esta idade saudável e feliz. Posso ser com eles”, diz, a apontar para o mural à frente dela, ainda pintado de fresco. De lá, um senhor de bigode e cabelo já acinzentado, dos seus 80 anos, sorri-lhe de volta.
Chegou àquela parede em Estarreja, distrito de Aveiro, a convite do ESTAU, o festival de arte urbana que decorreu pelo terceiro ano até domingo, 23 de Setembro. Marina Capdevila pintou o mural ao longo de cinco dias, “das 9h às 21h” (com uma pausa obrigatória de meia hora, depois do almoço, para a siesta), sem luvas — “nem pensar, perde-se muito a sensibilidade” — e sempre de auriculares — que só saíam dos ouvidos para ouvir os comentários de quem a ela se dirigia.
“Penso muitas vezes que eu trabalho aqui arduamente durante alguns dias e depois vou-me embora. E talvez nunca mais volte.” Já os moradores do prédio ao lado ou quem tem como rotina visitar a confeitaria Bolívar terão “de ver todos os dias a mesma ilustração e as mesmas cores”. “Espero sempre que eles gostem, senão sinto-me mal por forçá-los a ver isto”, ri-se.
Os universos alternativos de Marina
Licenciada em Belas Artes, em Barcelona, era até há cinco anos ilustradora freelancer. Trabalhava em casa, no estúdio, com o gato ao lado. Trabalhou com marcas como a Estrella Damm, Reebok, desenhou t-shirts para a Zara e para a Bershka. Até que um amigo, artista urbano, a provocou: “Queres vir comigo para a rua?” Foi. “E desde o primeiro dia que me viciei.”
Agora, viaja para pintar. Em telas gigantes. Em Portugal, à boleia do ESTAU, deixou este novo mural que reflecte, “com humor”, na poluição marinha relacionada com o plástico. “Sabes, é bom teres as tuas férias junto à praia, mas não te esqueças que em 2025 vai haver mais plástico do que peixes nos nossos oceanos”, relembra, ao P3, em frente à nova parede.
Imediatamente antes de rumar a Estarreja, terminava o seu maior trabalho de sempre. Um tributo aos antigos locutores da Radio Liberty, estação histórica criada por norte-americanos para difundir propaganda anticomunista durante a Guerra Fria. Ocupou uma área horizontal de 2180 metros quadrados: os telhados dos estúdios, abandonados em 2001, na praia de Pals, em Girona, Espanha. Ao contrário dos outros murais feitos a convite de festivais de arte urbana, este foi uma “aventura pessoal” que só pode ser vista do céu. Viu a história da rádio num documentário e "fascinou-se". A pintura demorou 12 dias a terminar e, quando foi revelada, “gerou controvérsia” na cidade, já que os terrenos pertencem ao estado espanhol.
O painel ultrapassou as dimensões do edifício de 18 andares, em Belo Horizonte, no Brasil, onde, em 2017, Capdevila pintou um mural com 44 metros de altura e 652 metros quadrados de área. Na capital do estado de Minas Gerais, imortalizou a tradição carnavalesca de se fazerem serenatas para os anciãos que ficam a assistir à festa da janela. Chamou à obra Las Carinhosas, uma referência à canção Carinhoso, de Pixinguinha, que serve de banda sonora ao costume.
Nos universos alternativos que cria, pôs uma senhora de óculos redondos a andar numa bicicleta hipster, em Amesterdão. Em Brooklyn, deixou uma mulher sem mãos a medir para tanta fast food. Em Vermont, desenhou um casal de motoqueiros que é demasiado cool para usar capacete. No México, voltou a trazer para o mar os pescadores expulsos da zona piscatória pelo negócio do petróleo. Na Flórida, juntou na parede do recreio de uma escola um grupo de mulheres a fazer hidroginástica, para ensinar às crianças a importância de fazer desporto ao longo de toda a vida.
E num dos muros da casa da avó, em Falset, a cidade onde cresceu, deixou um "avô" a espreitar por cima de um gelado enorme, com duas bolas e duas cerejas no topo — fica entregue à imaginação de cada um a simbologia. A avó, “a principal musa” da artista espanhola, adorou a brincadeira.