Caminhantes solitários: derivas na Arcádia

Uma viagem pelos caminhos e retiros da Provença e do Ródano que atraíram artistas e filósofos em busca de independência e afirmação criativa. Gray, Beauvoir, Cézanne, Corbusier e Rousseau. Lugares que revelam a construção recorrente de simulações da Arcádia.

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Este é o primeiro de uma série de ensaios sobre uma viagem pelos Alpes e pela história cultural da Europa. Serão quatro capítulos que representam diferentes paisagens, marcadas por obras literárias e autores cruciais para definir a memória cultural dos últimos dois séculos.

Na primeira parte da viagem partimos de Nice, no Sul de França, e seguimos o Ródano até à fronteira com a Suíça, seguindo os percursos de Simone de Beauvoir, que durante a sua juventude caminhou nas montanhas que rodeavam Marselha. Na segunda parte, partimos de Genebra e fomos até ao glaciar onde nasce o Ródano, uma paisagem que está assombrada pelas produções artísticas e científicas do século XIX. Na terceira parte, seguimos três exílios alpinos, o de Richard Wagner em Lucerna, o de Thomas Mann em Davos, e o de Friedrich Nietzsche em Sils. No quarto e último capítulo, seguimos as narrativas de Stendhal desde o lago de Como até Milão, regressando a Nice por Génova, de onde Garibaldi partiu para a Sicília, continuando a luta pela unificação de Itália.

A ideia deste projecto surgiu de uma conversa com Tiago Silva Nunes — que fez os ensaios fotográficos — sobre La Force de l’Âge (1960), as memórias de jovem adulta De Beauvoir. Os seus passeios nos Alpes Marítimos e Pré-Alpes, e a sua caracterização da caminhada como um espaço solitário de afirmação pessoal, levaram-nos a esboçar um itinerário que foi crescendo ao incluir outros autores para quem o acto de caminhar é igualmente importante, em particular W. G. Sebald, que em Vertigo (1990) escreveu uma narrativa paralela entre o seu próprio ritorno in patria e elementos da biografia de Stendhal — o escritor que criou a sua própria pátria.

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Casas modernas e cabanas primitivas

Em meados do século XIX, as ligações ferroviárias transformam o território da Côte d’Azur numa Arcádia acessível. Passa a ser o lugar onde a classe ociosa — o economista e sociólogo Thorstein Veblen chama-lhe a leisure class — vai passar o Inverno, trocando Londres ou S. Petersburgo pela costa do Mediterrâneo. Foi neste lugar que, em 1929, Eileen Gray construiu a E1027, uma casa para o editor da revista Architecture Vivante, Jean Badovici. Gray era uma aristocrata irlandesa, designer e arquitecta, com uma fortuna pessoal que lhe permitiu perseguir os seus interesses criativos. Nessa altura, Roquebrune, Sudeste da França, tinha apenas a linha do comboio e pomares de limoeiros.

Gray comprou o terreno e acompanhou detalhadamente a construção da casa, que seriam propriedade de Badovici. E1027 fora uma ideia dos dois, o nome da casa espelha essa parceria — resulta de um código criado a partir das iniciais de ambos, EG e JB: E de Eileen, J é a décima letra, B a segunda, e G a sétima. Poucos meses depois da sua construção, Gray deixou a casa onde Badovici permaneceu. A partir de 1930, Badovici acolhe muitos convidados, entre eles, Le Corbusier.

Visitámos E1027 num dia quente de Agosto, quando o contraste das paredes brancas com as gelosias negras fazia sobressair o azul brilhante do mar de Roquebrune. Gray descobriu um lugar especial do Mediterrâneo, pois o mar na Plage du Buse, devido a um fenómeno geológico cárstico, está povoado de aquíferos submarinos de água doce filtrada pelos Pré-Alpes de Nice que emergem em grandes quantidades em Cabbé. Em dias de mar calmo vê-se a turbulência da água doce a emergir do fundo do mar. Nadar nesse mar cristalino em frente a E1027 é uma experiência, as águas são atravessadas por correntes frescas, o que nos transporta momentaneamente para o tempo em que os pomares de limoeiros ainda não tinham sido substituídos por edifícios, nem os barcos de pesca por iates.

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Villa E1027, de Eileen Gray; Plage du Buse, Roquebrune

É no interior de E1027 que as ideias de Gray têm mais expressão. A casa foi concebida à escala do mobiliário que conforma a coreografia dos comportamentos de quem a ocupa. Gray espalhou pequenas frases impressas na parede que nos lembram de beber água — eau fraîche — quando acordamos, e não fazer barulho — défense de rire — quando entramos na sala. Para Gray, “uma casa não é uma máquina de habitar” nem a construção “de conjuntos belos de linhas, mas acima de tudo espaços para pessoas”. Em E1027, a sua intenção era a de criar espaços que permitissem aos habitantes “permanecerem livres, independentes” e que a casa, mesmo que ocupada por várias pessoas, criasse “a impressão de se estar só, e, caso se deseje, inteiramente só”.

Durante algum tempo, E1027 foi uma construção solitária naquela baía, mas, em 1947, Thomas Rebutato, um antigo membro da résistance de Nice, abriu o restaurante Étoile de Mer num terreno contíguo. Em 1951, Le Corbusier, que tinha passado tantas temporadas na E1027, constrói ali uma pequena cabana de férias — Le Cabanon — convenientemente próxima do restaurante de Rebutato. É um refúgio, uma recriação no Mediterrâneo de um abrigo de montanha suíço, com as suas paredes exteriores formadas por largos troncos de madeira. O espaço interior é um exercício de composição de áreas mínimas — influenciado pelo sistema/escala de proporções Le Modulor (1948) — e de composição plástica e escultórica, coberto de murais com um pavimento amarelo. Le Corbusier dizia “tenho um palácio na Côte d’Azur, tem 3,66 m por 3,66m. (...) É extravagante de conforto e delicadeza”. No entanto, ao contrário de E1027, o lugar mais importante — e confortável — é no exterior, sob uma alfarrobeira centenária com a paisagem ao fundo. Em Agosto de 1965, Le Corbusier morreu enquanto nadava nas águas de Roquebrune. Et in Arcadia Ego.

Caminhar como afirmação pessoal

Seguimos para oeste até Cassis, onde Virginia Woolf e outros membros do grupo de artistas e intelectuais Bloomsbury Set passaram os invernos do final da década de 1920. Esta vila é conhecida pelas calanques, formações rochosas que criam enseadas estreitas entre duas paredes quase verticais que se estendem pela costa até Marselha. Percorremos trilhos longos para as alcançar, gradualmente as escarpas brancas coroadas com pinheiros vão-se revelando, como um rolo vertical de uma pintura de Wang Meng. No ano em que Eileen Gray acabava a sua casa, 1929, Woolf publicou A Room of One’s Own, uma reflexão sobre a condição das mulheres, cuja independência estava sobretudo ligada à fortuna pessoal. Nesse ensaio, Woolf é peremptória: “Uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si, se quiser escrever.” Gray e Woolf pertencem à mesma geração, nascidas nas décadas finais do século XIX, e à mesma posição social, para quem a independência fora herdada.

No mesmo ano, 1929, a jovem Simone de Beauvoir é enviada para Marselha, onde irá dar aulas de Filosofia no Lycée Montgrand. É um palácio neoclássico construído em meados do século XVIII, com uma elegante fachada de pedra rosada, que em 1891 foi transformado em liceu de raparigas. Em La Force de l’Âge, Beauvoir descreve a sua chegada desta maneira: “Estava em Marselha, sozinha, de mãos vazias, separada do meu passado e de todas as coisas de que gostava. (...) Era eu que decidia como passar o tempo. Podia cultivar os meus próprios hábitos e prazeres.” Vivia num quarto alugado, o antigo quarto de serviço da casa de uma colega. “Era pequeno, mas ajustava-se bem ao meu ideal: tinha um divã, estantes para livros e uma mesa de trabalho.” Beauvoir lia sobretudo livros de história da arte e obras de Stendhal, a quem mais tarde dedicou uma parte de Le Deuxième Sexe (1949). Stendhal foi para Beauvoir um autor “decididamente feminista” que — como Woolf — lamentava a perda “de todos os génios do mundo que nasceram mulheres”.

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Calanque d’en Vau, Cassis; Terraço da Unidade de Habitação de Marselha (© Fondation Le Corbusier / ADAGP, Paris, 2018)

É em Marselha que Simone de Beauvoir descobre o prazer de caminhar sozinha, subindo todos os picos da região — “o Garlaban, o Mont Aurélien, Sainte-Victoire, o Pilon du Roi” — e descendo todas as calanques. Nas suas expedições, Beauvoir “procurava uma revelação em cada colina ou vale, e sempre a beleza da paisagem ultrapassava as [suas] memórias e expectativas”. Caminhar tornou-se uma obsessão que lhe permitia criar um lugar de reflexão e independência. “Sozinha, caminhei pela névoa suspensa no topo de Sainte-Victoire (...) [vivi] momentos que, com todo o seu calor, ternura e fúria, me pertencem a mim e a mais ninguém.”

A escritora tentou ignorar a ameaça da II Guerra Mundial até à invasão da Polónia. “Durante o Verão de 1939 ainda não tinha perdido a esperança. Uma voz obstinada sussurrava na minha cabeça: ‘Não me pode acontecer; não uma guerra, não a mim.” Em parte, foram as suas caminhadas que a ajudaram a concentrar-se noutra coisa para além do conflito iminente. Nesse ano fez uma das suas caminhadas mais ambiciosas, vários dias entre o Mont Ventoux, passando pelo vale de Queyras, até aos Alpes Marítimos. Em Larche, uma vila ocupada por militares próximo da fronteira italiana, pedem-lhe para apresentar os seus documentos, no entanto, ao adormecer, Beauvoir “não tinha outro pensamento na cabeça senão flores e animais e trilhos pedregosos e horizontes vastos, a agradável sensação de ter pernas e pulmões e estômago, e a determinação de ultrapassar alguns dos [seus] próprios recordes”.

O último bombardeamento que Marselha sofreu, em Maio de 1944, resultou em milhares de mortos, feridos e edifícios destruídos. É no final desse ano que Raoul Dautry, ministro da Reconstrução, convida Le Corbusier a projectar a Unidade de Habitação de Marselha. Neste edifício, o arquitecto materializou algumas das ideias sobre a cidade que desenvolvera desde o Plan Voisin (1925). É um testemunho do pós-guerra, impulsionado pela necessidade de construir habitação em massa, mas também pelo desejo de criação de um espaço protegido e ideal, uma ilha organizada na cidade caótica, com as suas próprias áreas comerciais e espaço público. Na cobertura — o toit terrasse — há um espaço comunitário que inclui uma pista de corrida, uma piscina infantil, uma escola, uma galeria, num conjunto de rara potência escultórica. Os muros do terraço enquadram as montanhas a sul e o mar a oeste, bloqueando a vista da cidade onde se multiplicam inúmeras versões deste edifício. Passámos o fim da tarde nesse terraço, onde no lado norte decorria uma aula de ioga, no lado sul moradores faziam piqueniques ao pôr do Sol, enquanto crianças tomavam banho na piscina. O terraço cria a ilusão de um espaço público onde todos os cidadãos vivem em harmonia — uma Arcádia no meio da cidade. No entanto, este espaço é privado e apenas acessível ao condomínio.

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A barragem Zola e Sainte-Victoire

Passamos por Aix-en-Provence a caminho da Route Cézanne e paramos numa praça onde muitas pessoas jogavam pétanque sob filas de plátanos. Acompanhados pelo som das cigarras, subimos o trilho próximo do Chemin de la Risante até a um miradouro à sombra dos pinheiros que enquadram a barragem Zola e o Mont Sainte-Victoire. A montanha e a barragem reflectem um debate, estabelecido desde o Discours sur les Sciences et les Arts (1750), de Rousseau, entre a natureza e o progresso, e constituem dois símbolos importantes do século XIX. Cézanne pintou esta vista com a montanha e a barragem — projectada pelo pai do seu amigo Émile, François Zola. As nuvens que passam ao longe tornam Sainte-Victoire num motivo em mudança permanente e rápida. As cores — verde, ocre, siena — são impressões momentâneas, num instante saturadas, noutro mudas. Por vezes a sombra das nuvens altera o perfil da montanha. É um motivo fascinante para quem observa com atenção, e percebemos porque Cézanne o tenha pintado continua e obsessivamente — um motivo que parece ser sempre o mesmo, mas nunca é o mesmo.

Seguimos mais uns quilómetros ao longo da Route Cézanne para leste, para percorrer os trilhos que Beauvoir descreveu como “caminhos vermelhos e ocres, através da planície de Aix, onde reconhecia as telas de Cézanne”, e subir o Sentier Rouge até ao Pas du Berger, na base do cume do Mont Sainte-Victoire. Durante a subida, a metamorfose continua a ser surpreendente. À medida que nos aproximamos do topo, os trilhos passam a rodear a montanha, o perfil pintado por Cézanne altera-se, e aquilo que era imagem transforma-se em espaço e matéria, cores e reflexos em rochas e sombras. Caminhar nesta paisagem é uma experiência fenomenológica intensa e recorda-nos o texto de Maurice Merleau-Ponty Le Doute de Cézanne (1945). Merleau-Ponty — que fora colega de Beauvoir — argumenta nesse ensaio que o processo de Cézanne implica um desejo de “confronto das ciências com a natureza”, e lembra a palavras deste: “A paisagem pensa através de mim, eu sou a sua consciência.” Também Cézanne foi um caminhante solitário dedicado ao trabalho e à interrogação da natureza e da arte. A sua vida teve um certo carácter monástico, isolado no seu atelier sumptuosamente frugal, um room of one’s own.

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Mont Sainte-Victoire e Barragem Zola; Mont Sainte-Victoire

Moderno medieval

É a pensar na reclusão monástica e na construção de conventos como recriações da Arcádia e do Éden que rumamos a norte. Seguimos o curso do Ródano desde Avignon até Lyon, na Autoroute du Soleil, sob uma tempestade com relâmpagos constantes, os sinais de caution orage avisam-nos que estamos a abandonar o Mediterrâneo. Em Éveux, na periferia rural de Lyon, visitamos o convento de La Tourette, a última obra que Le Corbusier acompanhou em vida, entre 1953 e 1961. Foi uma encomenda iniciada pelo padre Marie-Alain Couturier — conselheiro artístico e espiritual de Jean e Dominique De Menil e editor da revista Art Sacré — com quem Le Corbusier já tinha colaborado na Igreja de Notre Dame du Haut, em Ronchamp.

Antes de iniciar o projecto, Le Corbusier visitou Le Thoronet — abadia cisterciense do século XII, uma das trois soeurs provençales, com Silvacane e Sénanque — por recomendação de Couturier, para quem aquele edifício “é a essência do que deve ser um mosteiro, seja qual for a época da sua construção”. No interior da igreja de Le Thoronet, as paredes de pedra sem adornos, iluminadas por aberturas estreitas, criam uma atmosfera suave. A certa altura, um homem aproximou-se da abside, a sua voz preencheu gradualmente a igreja com uma cor palpável, que nos fez lembrar um cântico de Hildegarde von Bingen. No século XII, estes espaços conformavam dualidades — o silêncio e a música, a clausura e a peregrinação.

Lembro-me ainda de Paulo Varela Gomes (1952-2016) ter escrito neste jornal que Le Thoronet é um artefacto da Occitânia — a civilização refinada de onde provêm o “amor cortês e a poesia trovadoresca” — num texto a propósito da intolerância religiosa e da emancipação feminina. Segundo Varela Gomes, essa civilização desapareceu por via de uma “interpretação intolerante do cristianismo”, quando o “horror da repressão marcou o fim da doçura de viver da civilização do Sul” — outra Arcádia perdida.

Comparando o convento moderno de La Tourette e a abadia medieval de Le Thoronet, observamos vários paralelos: o modo como os edifícios acompanham o declive do terreno, a topografia complexa do claustro, as composições invulgares de volumes, a luz como elemento arquitectónico, mas, sobretudo, a criação de um terraço ligado às celas dedicado à reflexão solitária. Le Thoronet parece demonstrar a definição de Le Corbusier que a “arquitectura é o jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz”. Também a cripta de La Tourette é um lugar onde os efeitos luminosos são dramáticos, onde a evocação do transcendente no espaço é intensa, com uma parede ondulante de betão, planos coloridos amarelos, azuis e púrpura, iluminados por três óculos elípticos — que lembram as obras que James Turrell viria a desenvolver décadas mais tarde. Le Corbusier: “Nunca experimentei o milagre da fé, mas muitas vezes conheci o milagre do espaço inexprimível, a apoteose da emoção plástica.”

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Terraço da Abadia Le Thoronet; Claustro do Convento de La Tourette © Fondation Le Corbusier/ADAGP, Paris, 2018

La Tourette partilha também semelhanças com a Unidade de Habitação de Marselha, a intensidade escultural, as texturas de betão, as celas dos frades baseadas na célula singular dos quartos, mas sobretudo o toit terrasse. Este espaço reservado para a reflexão dos monges recria igualmente uma Arcádia protegida e apresenta uma perspectiva sobre a paisagem — o antigo Domaine de La Tourette. Esta propriedade pertenceu à família de Marc-Antoine de La Tourette, botânico do século XVIII, com quem Jean-Jacques Rousseau se correspondia a propósito do seu interesse sobre plantas. Ao final da tarde, caminhámos entre as árvores que rodeiam o convento descobrindo lugares fascinantes, povoados por caracóis gigantes, lesmas cor de laranja e plátanos que largavam a sua casca em pedaços com a forma de mapas imaginários.

Revolucionário exilado

Continuamos a nossa viagem ao longo do Ródano, passando por Genebra, seguimos o exílio de Rousseau até Môtiers, uma pequena vila no cantão de Neuchâtel. Depois de ter publicado Du Contrat Social (1762) e Émile, ou de L’Éducation (1762) — livros que foram banidos em Genebra e em França e colocados no Índice dos Livros Proibidos da Igreja católica —, Rousseau exilou-se aqui, com a protecção de Frederico II da Prússia. Este pensava que Rousseau tinha “nascido para se tornar um famoso anacoreta, um padre do deserto, celebrado pela sua austeridade” e que se tivesse mais recursos, que escasseavam depois da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), “construir-lhe-ia um eremitério com jardim”. Foi em Môtiers que Rousseau, com a ajuda do Docteur d’Ivernois, começou a interessar-se por botânica e a coleccionar exemplares de plantas.

Três anos depois, em Setembro de 1765, Rousseau foi novamente perseguido e apedrejado pela comunidade encorajada pelo padre local. Depois deste ataque, refugiou-se num mosteiro cluníaco na Île St.-Pierre, no meio do lago Biel, no cantão de Berna. No edifício onde Rousseau viveu, hoje um hotel, encontramos o seu quarto, ainda preservado como artefacto histórico. Da sua janela podemos ver a margem sul do lago com os Alpes ao fundo.

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Margem do Lago Biel, Île St.-Pierre; Dents du Midi a partir do Lago Léman

Rousseau descreveu a sua estada em Les Rêveries du Promeneur Solitaire (1782). Na quinta promenade escreve: “De todos os lugares onde vivi nenhum me fez tão feliz.” E caracteriza a paisagem como mais “selvagem e romântica” do que a do lago em Genebra, relatando ainda como passa o tempo a “compor a Flora Petrinsularis e a descrever todas as plantas da ilha com tal detalhe que isso [poderia] ocupá-lo até ao fim dos seus dias”. No entanto, sempre que podia “remava até ao meio do lago, quando as águas estavam calmas, e aí deitava[-se] ao comprido no barco dirigindo o olhar para o céu” e deixava-se andar à deriva durante horas, “sem necessidade de se lembrar do passado ou imaginar o futuro em que o tempo se dissolvia e o presente se estendia sem limite, mas sem duração, sem nenhum outro sentimento que o da existência”.

A epifania de Rousseau — a sua descrição de comunhão com a natureza — influenciou crucialmente a produção literária e artística dos séculos XIX e XX, de Stendhal a Shelley, de Beauvoir a Sebald. Este episódio da deriva na natureza é reencenado por Stendhal em De l’Amour (1822) quando recorda as tardes flutuando num barco em que “nunca sentiu tão intensamente a beleza comovente e solitária das margens do lago di Garda”. E por Sebald em Vertigo, ao confessar: “Deitei-me no barco e olhei para a cúpula celeste, as estrelas apareciam por detrás das escarpas ameaçadoras em tal número que pareciam tocar-se. Remar fez-me tomar consciência do sangue que corria nas minhas mãos. O barco flutuava passando pelos terraços íngremes dos pomares abandonados onde outrora cresciam limões.”

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Rumamos para sul de regresso ao lago Léman. Próximo de Vevey, em Corseaux, na Suíça, visitamos a primeira casa modernista de Le Corbusier, a Villa Le Lac (1919), onde a sua mãe e irmão viveram. Se no final da vida Le Corbusier construiu uma pequena cabana Suíça no Mediterrâneo, no início projectou uma casa do Mediterrâneo na Suíça. No jardim, onde antes havia uma enorme árvore — paulownia —, existe uma janela num muro que enquadra o vale do Ródano e os cumes dos Dents du Midi, apontando o caminho para as visões do sublime Alpino, que exploraremos no próximo capítulo da nossa viagem. Como Rousseau escreve em Émile, “ao longe, a imensa cadeia dos Alpes coroava a paisagem; os raios do Sol nascente rasavam as planícies projectando nos campos as longas sombras das árvores, dos outeiros, das casas (...) dir-se-ia que a natureza nos exibia toda a sua magnificência oferecendo um motivo para a nossa conversa”.

Eliana Sousa Santos é investigadora do CES, Universidade de Coimbra

No próximo domingo: Arte e Ciência