Autobiografia imaginária

Em quase 50 anos de carreira, Alfredo Cunha encheu as suas imagens de pessoas. É raro encontrar publicada uma fotografia sua de paisagem contemplativa. Os rostos são uma marca de água de um percurso agora celebrado em Retratos (Tinta-da-China). Um dia, o escritor Valter Hugo Mãe recebeu Alfredo Cunha para um retrato. A impressão que lhe ficou desse momento vem confessada no posfácio da obra e aqui.

Foto

Somos fotografados pelo Alfredo Cunha como provas do tempo. Não enfrentamos a sua câmara sem respeito. Vimos depois de algumas das imagens mais importantes do país, e a máquina parece auscultar-nos a paz ou a culpa. Lembro-me de pensar nos objectos e em como são pacientemente genuínos diante de quem os observa. Lembro-me de perigar na autenticidade, problematizado pelos nervos e pela reverência. Quando provamos o tempo somos a súmula do que vivemos e de quanto reconhecemos. Não comparecemos protagonistas apenas, somos chamados a caber numa história maior e tememos tudo, quer dizer, não importa a nossa unicidade mas o que contemos de universal, como se nos medissem o contributo para a generalidade dos homens.

Não é que as fotografias nos roubem a alma, claro, mas que podem denunciá-la no esconso de um olhar é verdade. Subitamente, quando somos fotografados por alguém como Alfredo Cunha, não nos incomoda a evidência simples do corpo mas a flagrância de uma interioridade onde nos mostramos na timidez secreta, ou no medo inconfessado, que carregamos.

Há uma monumentalidade generosa nas imagens de Alfredo Cunha. Digo assim, exactamente porque sublinha de cada um a universalidade. Não importa muito que possamos ver retratos de gente pública porque os seus retratos reconduzem todas as pessoas a uma presença despida, translúcida, onde nos equivalemos. O território mais fulgurante do retrato é esse onde se detecta o que comungamos pelo simples facto de sermos gente. O olhar de Alfredo Cunha encontra gente, mesmo nos rostos mais treinados ou reticentes, ele transpõe, quase transgride, e captura.

Foto
Alfredo Cunha (1972 e 2013)

Acontece poucas vezes de sermos fotografados com um efeito interior, uma espécie de intimidade inesperada. Sobretudo quando a pessoa do fotógrafo nos é substancialmente desconhecida e, como tal, entra em nossa casa enquanto visita naturalmente cheia de limites e cordialidades cerimoniosas. Há algo de ladrão num fotógrafo assim, porque ele toma muito mais do que julgamos estar a dar. Talvez fiquemos ocupados com o ajeitado da casa, as cores, o modo da luz, e isso descobre-nos. Somos anfitriões vulneráveis porque não sabemos o que vale para a arte da fotografia. Imaginamos a fotografia mas nunca sucedemos na efectivação dessa ideia. Aparecemos sempre de outra maneira, não igual a sermos outros mas a sermos a camada de baixo do que julgávamos mostrar.

De todo o modo, se formos sujeitos ao ladrão, ficamos-lhe gratos. Quero dizer, o que a fotografia nos toma é um retorno que nos afina na sinceridade, quantas vezes atrapalhada ou trapalhona, com que levamos a vida. Subitamente, surpresos, podemos receber a fotografia como o lado inelutável. Afinal, o que se afirma como inelutável simplifica o conceito de nós mesmos, simplifica-nos a vida.

Perante as fotografias de Alfredo Cunha, fica-nos a vontade urgente de amar. Vemos cada rosto e pedimos por cada rosto. Como amigos imediatos. O que consegue é da ordem da imediata celebração de se ser alguém. E, nós, olhamos como quem abraça ou acarinha.

Lembrei-me dos 15 minutos de Alfredo Cunha na minha casa, talvez há três ou quatro anos. Continuo sem entender como, em tão breve tempo, pôde ele levar de mim a mesma magia. Um carinho instantâneo. Algo maior do que eu. Algo de todos nós. O melhor de todos nós.

Fotogaleria