Quando é que o passado passa?
Magistratura e poder político podem dizer o que quiserem, mas o passado só passa quando as vítimas dele disserem que passou.
Não, não é um detalhe. Numa cultura como a nossa que satura de simbolismo a morte, os seus rituais e a sua espacialidade, é evidente que ter deixado intacto o Vale dos Caídos revela bem com qual das memórias espanholas se confunde o discurso da reconciliação que a transição pós-franquista quis impor para calar a exigência de depuração de responsabilidades. Um monumento que se quis esmagador desde a sua génese, que comemorava, não a paz mas a vitória de uma parte da Espanha sobre a outra, nunca foi e não pode ser um instrumento de reconciliação, como as reportagens de Manuel Louro aqui no PÚBLICO bem mostraram. Deve, isso sim, ser contextualizado e revelado como o emblema de vingança que Franco quis que ele fosse.
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Não, não é um detalhe. Numa cultura como a nossa que satura de simbolismo a morte, os seus rituais e a sua espacialidade, é evidente que ter deixado intacto o Vale dos Caídos revela bem com qual das memórias espanholas se confunde o discurso da reconciliação que a transição pós-franquista quis impor para calar a exigência de depuração de responsabilidades. Um monumento que se quis esmagador desde a sua génese, que comemorava, não a paz mas a vitória de uma parte da Espanha sobre a outra, nunca foi e não pode ser um instrumento de reconciliação, como as reportagens de Manuel Louro aqui no PÚBLICO bem mostraram. Deve, isso sim, ser contextualizado e revelado como o emblema de vingança que Franco quis que ele fosse.
Tudo somado, que Franco seja exumado do Vale dos Caídos e transferido para uma sepultura comum, e privada, é politicamente muito simbólico – e perfeitamente básico numa democracia que rejeite explicitamente a ditadura e o fascismo –, mas francamente do menos importante para conseguir que o Estado espanhol enfrente as suas responsabilidades históricas e legais. Muito mais grave do que perpetuar a decisão do rei Juan Carlos de o ter enterrado lá é que todos os governos espanhóis desde o final do franquismo se tenham recusado a resolver o problema humano, político e legal dos espanhóis assassinados nos territórios gradualmente ocupados pelos franquistas durante a guerra de Espanha (1936-39), na retaguarda e longe da frente de combate, e nos anos do pós-guerra (pelo menos até 1951), um número entre 110 e 160 mil, segundo as fontes, cujos corpos não foram encontrados, exumados e devidamente identificados. Nesta contabilidade não se incluem, naturalmente, os cerca de 40-50 mil mortos em território republicano, cujos corpos passaram por aquele processo e foram homenageados e compensadas as suas famílias ao longo dos 40 anos da ditadura franquista.
Desde há muito que a ONU urge o Estado espanhol a cumprir as suas obrigações internacionais, recordando que o desaparecimento forçado é um crime que não prescreve, ao contrário do que pretendem governantes e magistrados. Quando o juiz Baltasar Garzón aceitou, em 2008, abrir uma investigação judicial sobre um total de 114.266 casos de “desaparecimentos forçados” e sequestro de crianças (filhas de mães republicanas) que configuram crimes contra a humanidade, praticados ou encobertos pelo regime franquista entre o início da guerra civil (1936) e dezembro de 1951 – porque o franquismo continuou a matar em massa mesmo depois do final da guerra, em abril de 1939 –, uma tempestade política abateu-se sobre ele. O Ministério Público espanhol, numa das mais vergonhosas avaliações que do passado genocida de uma ditadura uma instituição judicial possa ter feito, recorreu da abertura desse processo, considerando que aquelas mortes às mãos de autoridades militares e políticas não passavam, afinal, de um conjunto de “delitos comuns” que teriam prescrito à luz da Lei de Amnistia de 1977 – a mesma que a ONU tem insistido que a Espanha revogue por forma a que ela própria possa cumprir as obrigações previstas nos tratados internacionais que subscreveu: em 1985, a Convenção Internacional contra Tortura e, em 2007, a Convenção Internacional contra os Desaparecimentos Forçados, que estabelece, preto no branco, que “os Estados subscritores tomarão as medidas apropriadas para investigar” os “desaparecimentos forçados que sejam obra de agentes do Estado ou de pessoas ou grupos de pessoas que atuam com a autorização, o apoio ou a aquiescência do Estado”. Ao entender que não se podem julgar hoje “crimes contra a humanidade”, porque “a legalidade penal internacional não existia no momento da comissão dos factos”, a Justiça espanhola parece achar que também não se podiam julgar os nazis em Nuremberga por um tribunal que, justamente, tipificou pela primeira vez na história o “crime contra a humanidade”.
Direita, PSOE e juízes conseguiram bloquear a investigação expulsando Garzón da carreira judicial, em 2012. Dois anos antes, a Justiça argentina, ao abrigo do princípio de justiça universal (o mesmo princípio que permitiu que em Espanha se abrisse um processo contra Pinochet), abria uma ação contra os responsáveis “pelos delitos de genocídio e/ou crimes contra a humanidade que tiveram lugar em Espanha” entre 1939 e 1977. A Justiça espanhola recusa-se desde então a colaborar com a investigação e em deter, extraditar ou sequer interrogar vários acusados, sobretudo ex-ministros de Franco.
Magistratura e poder político podem dizer o que quiserem, mas o passado só passa quando as vítimas dele disserem que passou.