A Tinta Negra e a ousadia da madeirense Diana Silva
No mundo dos vinhos, ser primo, filho, tio, pai ou mãe de alguém reconhecido ajuda muito, nem que seja ao ego. Não admira, por isso, que haja até quem use o nome da mulher para ser mais notado.
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No mundo dos vinhos, ser primo, filho, tio, pai ou mãe de alguém reconhecido ajuda muito, nem que seja ao ego. Não admira, por isso, que haja até quem use o nome da mulher para ser mais notado.
Do mesmo modo, fazer vinhos de uma variedade que é mãe, filha ou prima de outra casta famosa também pode ajudar a vender. A tinta da Barca, por exemplo, é uma casta pouco conhecida, até mesmo onde está mais presente, no Douro. Mas saber que é filha da Touriga Nacional já nos faz encará-la de outra maneira, o que pode explicar também o interesse que tem despertado junto de alguns enólogos durienses.
Vem isto a propósito da Tinta Negra, a casta mais plantada na Madeira e que há quem afirme ser prima da estelar Pinot Noir. Durante muito tempo, a Tinta Negra foi também chamada de Tinta Negra Mole, suscitando equívocos que tardam em desaparecer, dada a existência de uma outra variedade com o nome de Negra Mole. Tinta Negra e Negra Mole são duas castas diferentes. A primeira abunda na Madeira, a segunda está a ressuscitar no Algarve, onde tem grande tradição.
A Tinta Negra é a mesmíssima Molar de Colares, onde é usada para amaciar os vinhos da principal casta tinta da região, a muito taninosa Ramisco. Na Madeira, a Tinta Negra serviu durante muito tempo para acrescentar volume aos afamados fortificados, feitos, sobretudo com castas brancas (Malvasia, Verdelho, Sercial, Bual e Terrantez). Com o quase desaparecimento destas variedades (primeiro pela filoxera, depois devido à pressão imobiliária), a mal-amada Tinta Negra tornou-se hegemónica e converteu-se no seguro de vida dos produtores de Madeira. Tornou-se hegemónica porque é bastante resistente às principais doenças da vinha e, sobretudo, porque é altamente produtiva. Chega a produzir 30 toneladas por hectare, nas terras mais férteis da parte norte da Madeira. Por produzir tanto, tem dificuldades em amadurecer - daí ter sido durante muito tempo o patinho feio dos vinhos Madeira. Nos últimos anos - à falta de melhor, diga-se - começou a ser indultada e elevada a casta com grande potencial enológico, ao ponto de algumas companhias da Madeira já fazerem garbo de produzir vinhos fortificados só de Tinta Negra, como são o caso da Barbeito, da Justino’s e da Madeira Wine Company.
O último passo na redenção da Tinta Negra acaba de ser dado por uma jovem madeirense, Diana Silva, que, na colheita de 2017, decidiu fazer três vinhos tranquilos com esta variedade: um tinto, um rosé e um branco (ver provas de vinhos). É a primeira a engarrafar vinhos tranquilos de Tinta Negra na Madeira. O nome da marca é também uma lança em África: Ilha. Os três vinhos foram apresentados publicamente no passado dia 13, em São Vicente.
Diana Silva tem 33 anos e teve o primeiro contacto com o sector dos vinhos aos 18, num estágio que fez na Madeira Wine Company. Com formação em comunicação e turismo e em marketing de vendas, foi escanção em Lisboa, onde vive, e trabalhou como comercial com Rui Reboredo Madeira e Paulo Laureano, entre outros produtores. Há dois anos iniciou uma nova formação em enologia e em 2017 iniciou o seu próprio projecto, juntamente com o marido, Ricardo Gusmão, controler financeiro.
A opção pela Madeira natal e pela Tinta Negra era um desejo antigo, mas demasiado ousado, ao ponto de até João Pedro Machado, o enólogo da Adega de São Vicente, onde são elaborados quase todos os vinhos tranquilos da ilha, a ter tentado demover da ideia, quando Diana lhe foi pedir ajuda. Hoje, partilha do mesmo entusiasmo da produtora e já acredita que este projecto pode abrir novas possibilidades de valorização da principal casta da Madeira.
Diana Silva (ainda) não tem vinhas, pelo que é obrigada a comprar uvas a produtores locais. No primeiro ano não foi fácil, apesar de ter pago a pronto e bem acima do preço de mercado. Para este ano já vai contar com as uvas da família de Samuel Freitas, um produtor local com experiência em agricultura biológica e que faz uma viticultura mais sustentável (convencional, mas com menos tratamentos).
As vinhas de Samuel e da família situam-se em São Vicente na parte norte da Madeira (mais montanhosa e chuvosa) e estão armadas no tradicional sistema da latada (ou parreira). Por ocuparem toda a superfície de terreno, as latadas são mais produtivas e permitem limpar o terreno sem recursos a herbicidas; em contrapartida, obrigam a permanentes desfolhagens, para as uvas poderem apanhar sol.
Não é o melhor sistema vitícola, mas é o que impera nas encostas montanhosas de São Vicente - nasceu da necessidade de aproveitar a terra para outras culturas. Que ainda perdure, face à orografia do terreno, é, só por si, algo de notável. E haver alguém que ache ser possível fazer bons vinhos com uvas dessas latadas é ainda mais extraordinário.
O grande mérito de Diana Silva é esse: acreditar que a Tinta Negra, mesmo em latadas como as de São Vicente, pode originar vinhos singulares, se for bem trabalhada na vinha. Os belíssimos vinhos fortificados de Tinta Negra feitos por Ricardo Diogo, na Barbeito, e por Francisco Albuquerque, na Madeira Wine Company, já deram bons sinais sobre o verdadeiro valor da casta, embora, passe o exagero, qualquer uva faça um bom vinho Madeira. O segredo deste vinho está na riqueza do solo madeirense, que dá frutos doces mas com grande acidez, e no processo de envelhecimento dos vinhos, que são oxidados meio à bruta logo de início para se tornarem quase eternos. Nos vinhos tranquilos é diferente. Uma boa acidez não chega para fazer um bom vinho. É preciso muito mais.
Na sua primeira experiência, Diana Silva provou que a Tinta Negra na Madeira pode não chegar para produzir tintos concentrados e encorpados, mas que é suficiente para fazer rosés cheirosos e delicados, brancos seivosos e austeros e tintos muito aromáticos, finos, elegantes e super frescos, um perfil com cada vez mais apreciadores. E não é preciso insistir que esta variedade é prima da Pinot Noir ou que resultou de um cruzamento desta casta com a Grenache. A nível genético, a Tinta Negra não tem qualquer relação com a Pinot Noir, como assegura Eira Dias, da Estação Vitivinícola Nacional. Presume-se que a sua origem seja nacional. Mas há algo que liga a Tinta Negra à Pinot Noir: aromaticamente são muito semelhantes (cheiram em novos a framboesas, morangos, cerejas e violetas) e isso já é um excelente cartão-de-visita.