Tiago Galo sujou as mãos e passou do computador para a rua

O ilustrador achou que estava na altura de sujar as mãos. Deixou o estúdio em Lisboa e rumou a Pardilhó, a convite do ESTAU, festival de arte urbana. No muro da igreja deixou o registo de quatro ofícios tradicionais daquela freguesia de Estarreja.

Lara Seixo Rodrigues olha para o trabalho de Tiago Galo e descansa-o: “É isto. Agora só falta o resto.” A conversa é entre dois arquitectos que já não querem ter nada a ver com a arquitectura. Agora, estão os dois de olhos (e mãos) presos, não a um edifício, mas a uma só parede. O trabalho de Tiago, agora ilustrador editorial freelancer, é manchá-la de tradição a convite de Lara, agora curadora e produtora de festivais de arte urbana.

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Lara Seixo Rodrigues olha para o trabalho de Tiago Galo e descansa-o: “É isto. Agora só falta o resto.” A conversa é entre dois arquitectos que já não querem ter nada a ver com a arquitectura. Agora, estão os dois de olhos (e mãos) presos, não a um edifício, mas a uma só parede. O trabalho de Tiago, agora ilustrador editorial freelancer, é manchá-la de tradição a convite de Lara, agora curadora e produtora de festivais de arte urbana.

Para pintar aquele mural na terceira edição do ESTAU - Estarreja Arte Urbana, Tiago Galo, 37 anos, deixou o computador e o estúdio em Lisboa, pegou no pincel e em tinta e rumou a Pardilhó, freguesia do município de Aveiro com menos de cinco mil habitantes, a 40 minutos de carro do Porto. O desafio, diz, é mesmo esse. “Passar de um meio em que conseguimos controlar todos os aspectos, a desenhar numa escala pequena, no computador ou à mão, e ir para uma parede em que já sabes que não vais conseguir ter uma linha completamente direita.” 

Saber disto de antemão não o estava a deixar mais seguro. Se nos trabalhos de ilustração editorial que faz à distância, maioritariamente para revistas e jornais internacionais — GQ, La Repubblica, Vogue, Flipboard, National Geographic Traveler, Financial Times —, é obcecado pelo detalhe, pela textura, “aqui, é impossível replicá-la”. Fica a textura da parede, porosa. “O que até resulta bem.”

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Not going anywhere Tiago Galo

Aqueles quatro murais, cada um dedicado a um ofício tradicional da região, foram os primeiros que pintou (já há outro na mira, desta vez na ilha Terceira, nos Açores, a propósito do festival Walk&Talk). Ao mesmo tempo, são também os primeiros que alguém já deixou naquela freguesia onde as deslocações diárias são muitas vezes feitas em cima de uma bicicleta, por homens, mas sobretudo por muitas mulheres, de todas as idades (mas sobretudo mais velhas), e onde não se avista um graffiti ou uma tag, quanto mais “este tipo de expressão nas paredes”. “Território virgem”, ri-se o ilustrador.

Os moradores estão “curiosos”. Há quem se chegue à frente: “Olhe, e têm autorização para estar aí a pintar a parede?” Ainda para mais Tiago está a pintar o muro da igreja. “Não há uma identificação imediata” com as imagens que representam os artesãos da tecelagem — a Casa do Tear é ali ao lado —, o fabrico de tamancos, o trabalho do junco e a construção naval dos moliceiros, os barcos que vemos na ria de Aveiro, agora usados para viagens turísticas. Quando olham, prestam primeiro atenção às mãos, um elemento que Tiago normalmente exagera, tornando-as desproporcionais, para mostrar que é delas que parte tudo (em todas aquelas artes também). E deixam escapar, a pensar nas dele: “Que ricas mãos.”

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A igreja de Pardilhó com os quatro novos murais a serem pintados

O ilustrador gosta da ideia de mostrar “a perspectiva de uma pessoa de fora”. “O que é que um lisboeta, que vive numa urbe com alguma dimensão, pensa sobre isto?” Está encantado. Começou a trabalhar na noite de 14 de Setembro. Por não ter experiência, precisou de projectar na parede as ilustrações que já trazia prontas e, com um lápis, marcou todas as linhas. Agora, já estão preenchidas. O azul, vermelho e laranja competem com os vitrais e os tradicionais azulejos em azul e branco que revestem a igreja. “Quando eu soube que o meu ia ser o muro da igreja, também me caiu o peso da responsabilidade em cima”, assume. Ainda bem porque lhe interessa menos “fazer só uma coisa gratuita, pintar uma parede só porque sim” e mais “ir buscar referências, aspectos culturais da região e dar-lhes forma numa parede com essa temática”. Mais do que inventar, registar vivências, perto do sítio onde existem ou já existiram.

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Está no sítio certo. É isto que Lara Seixo Rodrigues procura fazer com as paredes que dá a pintar em Estarreja, através da plataforma artística interventiva Mistaker Maker. De 15 a 23 de Setembro, os portugueses Add Fuel, The Caver, Regg Salgado, os espanhóis Marina Capdevilla e SpiderTag e o italiano Millo dedicaram-se cada um a uma fachada que agora ganha uma história pintada de fresco. 

Tiago Galo era o único que nunca tinha tido “a coragem de se chegar à frente” e encarar uma tela de cimento. Mesmo que, já em 2015, andasse a pintar fachadas de Lisboa. Falsas. Como? Com uma câmara fotográfica e alguma edição. “Dá-me gozo poder manipular desta forma um espaço, sem restrições”, contava, na altura, ao P3.

Depois de sujar as mãos, já se apercebeu que, afinal, existem algumas restrições. Apesar disso, ao fim de cinco dias de trabalho, o muro estava “finalmente a tomar forma” quando o P3 o visitou. Estará pronto esta sexta-feira, a três dias do fim de mais uma edição do ESTAU. “Também há outra coisa”, interrompe-se, voltando atrás. A arte urbana está entre a “gratificação instantânea” de uma ilustração digital — “quase de um dia para o outro, afinal, os jornais saem todos os dias” — e “a frustração” do trabalho de um arquitecto — “que só passados quatro anos é que vê o projecto terminado e, muitas vezes, nem se revê nele”.

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Em Pardilhó, teve de deixar a tinta secar. Atravessar a rua, afastar-se e voltar a olhar. “As coisas não ficam exactamente como eu quero.” Paciência. Há que “fazer as pazes” com as linhas que ficam tortas.