Avillez, o chef guarda-costas e o que torna o húmus especial
Chama-se Za’atar o novo restaurante que José Avillez está a abrir em Lisboa com o chef libanês Joe Barza, figura carismática que nos anos 80, cansado da guerra, se dedicou à cozinha.
Na parte interior do braço de José Avillez, está uma tatuagem de letras pequenas, difíceis de ler à distância: “Everything you can imagine is real”. No braço possante de Joe Barza, vê-se, em letras muito maiores, uma única palavra: “Believe”.
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Na parte interior do braço de José Avillez, está uma tatuagem de letras pequenas, difíceis de ler à distância: “Everything you can imagine is real”. No braço possante de Joe Barza, vê-se, em letras muito maiores, uma única palavra: “Believe”.
Talvez tenha sido esta capacidade de acreditar que o mundo está cheio de possibilidades que aproximou o português e o libanês, que se conheceram há dois anos num evento no Algarve e que estão agora a lançar juntos um restaurante libanês em Lisboa – o Za’atar, na Rua de São Paulo, com abertura marcada para o final do mês.
Joe Barza teve, antes desta, uma outra vida diferente. O homem imponente, de barbicha branca, chapéu e olhar simpático, sentado à nossa frente no mais recente projecto de restauração de José Avillez foi guarda-costas do Presidente libanês Bashir Gemayel, cristão e fundador das Forças Libanesas, assassinado em 1982 num atentado à bomba.
Era o tempo da guerra civil no Líbano e Joe, como todos os libaneses, não podia passar ao lado do que estava a acontecer. “Adorava esse homem, depois dele morrer fiquei com a família mais dois ou três anos”, conta. Mas estava cansado da guerra. “Foi duro fazer a mudança, foi doloroso, todos os dias perguntava a mim próprio se devia ficar ou partir.” Partiu. E na África do Sul começou a sua segunda vida.
Aprendeu a cozinhar e, aproveitando o facto de o país se estar a abrir e querer apostar nas ligações aéreas com o Médio Oriente, começou a trabalhar mais os sabores e ingredientes do Líbano. Hoje, aos 55 anos, é um embaixador da cozinha libanesa no mundo, famoso também por ter feito o programa Top Chef do Médio Oriente.
Foi este o homem que Avillez convidou para abrir um restaurante em Lisboa – como já fizera com Diego Munoz para a cozinha peruana (Cantina Peruana, ver caixa), e com Roberto Ruiz e o mexicano Barra Cascabel, no El Corte Inglès. A ideia, explica o chef português, tem sido a de trazer para a capital cozinhas que durante muito tempo estiveram pouco ou nada representadas.
Quando trabalhava na África do Sul, Joe Barza começou a desenvolver uma cozinha libanesa de base tradicional, mas liberta de amarras. “No Líbano”, explica, “se se mistura bulgur com carne, é como a Bíblia. Não se pode mudar. O que fiz não foi mudar as receitas, mas tentar dar mais valor ao produto. Comecei a ir às montanhas, a falar com os camponeses, não foi difícil, foi um prazer.”
E, gradualmente, com o seu trabalho e depois o de outros chefs, algumas coisas foram mudando. “Primeiro, houve algumas reservas da parte das pessoas, mas não desisti. E se em dez restaurantes tínhamos um libanês e nove internacionais, hoje é exactamente ao contrário. E é assim em todo o mundo. O que fizemos de 2000 até hoje foi grande”, declara, com orgulho.
Avillez entra na conversa para reforçar esta ideia de que esta valorização da cozinha libanesa começou fora do Líbano. Há uma explicação simples para isso: se no seu próprio país os libaneses são quatro milhões, fora do Líbano são vinte milhões (só no Brasil são oito milhões).
Há, claro, muita coisa em comum entre a cozinha que se faz no Líbano e a que se encontra noutros países do Médio Oriente, como a Síria, a Jordânia ou a Palestina. Mas Joe Barza garante que reconhece um prato libanês de olhos fechados, seja ele húmus (pasta de grão com tahini), baba ganoush (beringela fumada) ou tabbouleh (salada à base de salsa e bulgur).
“Acredito que a comida é o reflexo do espírito de um povo. O húmus, por exemplo, tem a ver com a forma como se demolha o grão, como se seca, como se cozinha, como se arrefece, como se mistura. Cada vez que faço húmus é um desafio, é como a maionese.” Fundamental é o respeito pelo ingrediente e pelo sabor. “Estamos a agradecer aos nossos antepassados. Mas isso não significa que não possamos misturar húmus com manjericão ou com pasta de malagueta. Por que não? O sabor é óptimo.”
No Za’atar, os clássicos libaneses vão ter pequenas adaptações para os aproximar do gosto português – “no Líbano gostamos muito de acidez, aqui, com o José, estamos a tentar equilibrar isso”, explica Barza. Outra preocupação de Avillez é evitar aquilo que no Líbano achou excessivo: a quantidade de comida servida, e, diz, muitas vezes, desperdiçada porque “come-se 40% e deita-se o resto fora”.
Na parede do restaurante (a decoração é da libanesa Nayla Khoury) está pintada uma frase em árabe: “A vida é sempre melhor com uma pitada de za’atar”. Avillez concorda e confessa que quando esteve no Líbano se apaixonou por este tempero que é uma erva mas também uma mistura de especiarias.
Quando nos despedimos, Joe Barza mostra-nos uma fotografia sua, mais jovem, vestido de camuflado, durante a guerra no Líbano. Antes tínhamos-lhe perguntado porque é que usa sempre um chapéu. “No Exército, havia bombardeamentos e tinha sempre um capacete. Depois, continuei sempre a usar alguma coisa na cabeça. Com o chapéu, sinto-me seguro, sem ele fico perdido.” E assim o deixamos, uma espécie de Indiana Jones, na sua cozinha de Lisboa, a fazer húmus como se fosse sempre a primeira vez.