Director do Museu de Serralves apresentou a demissão
João Ribas garantira ao PÚBLICO que não ia haver “salas especiais” na exposição dedicada ao fotógrafo Robert Mapplethorpe que inaugurou na quinta-feira no Porto. Director ter-se-á sentido desautorizado.
O director artístico do Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresentou nesta sexta-feira a sua demissão à administração da Fundação de Serralves. João Ribas disse ao PÚBLICO que “já não tinha condições para continuar à frente da instituição” portuense, mas reservou para mais tarde a justificação da sua demissão.
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O director artístico do Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresentou nesta sexta-feira a sua demissão à administração da Fundação de Serralves. João Ribas disse ao PÚBLICO que “já não tinha condições para continuar à frente da instituição” portuense, mas reservou para mais tarde a justificação da sua demissão.
A demissão do director vem na sequência de a administração da Fundação de Serralves ter interditado a menores de 18 anos uma parte da exposição por si comissariada dedicada ao fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe e ter imposto a retirada de algumas obras com conteúdo sexualmente explícito.
A exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, que foi inaugurada quinta-feira em Serralves, abriu com menos 20 fotografias do que as 179 inicialmente anunciadas por João Ribas, também curador da mostra, e pela própria instituição num comunicado de imprensa enviado às redacções esta sexta-feira.
A exposição “é composta por 159 obras do autor, escolhidas pelo curador desta apresentação”, respondeu o gabinete de imprensa da Fundação de Serralves à pergunta do PÚBLICO sobre se a administração, presidida por Ana Pinho, pedira a retirada de alguma foto. Se num primeiro momento o gabinete não revelou quem tomara a decisão de excluir fotografias da lista inicial, numa segunda resposta a administração de Serralves avançou que as fotografias tinham sido retiradas por João Ribas: “Por uma questão de layout expositivo, o curador desta exposição retirou um conjunto de 20 obras, correspondentes a várias fases do trabalho de Robert Mapplethorpe, apenas e só por uma questão de uniformidade desta mostra e não baseada em qualquer outro factor.” Terá sido esta afirmação que levou Ribas a apresentar a sua demissão ainda esta sexta-feira à noite.
De facto, inesperadamente, a exposição inaugurada inclui uma zona reservada à qual os menores de 18 anos não têm acesso, mesmo que estejam acompanhados por adultos. Uma opção desconcertante, tendo em conta que João Ribas assegurara há uma semana ao PÚBLICO que nesta retrospectiva não haveria “censura, obras tapadas, salas especiais ou qualquer tipo de restrição a visitantes de acordo com a faixa etária”.
As declarações de Ribas, que o PÚBLICO reproduziu num artigo justamente intitulado Nesta exposição não há salas escondidas, parecem inequivocamente contraditórias com a opção que acabou por ser seguida de colocar cerca de 30 obras, consideradas “de carácter eventualmente chocante”, em duas salas interditas a menores de 18 anos. Uma contradição que o PÚBLICO tinha tentado esclarecer com o director artístico desde a manhã desta sexta-feira.
Sobre este espaço interdito a menores de 18 anos, a Fundação de Serralves disse ao PÚBLICO na primeira resposta por escrito que “a sinalização existente na exposição foi colocada de acordo com a legislação em vigor”, remetendo para o decreto-lei 23/2014. Na segunda resposta, no entanto, Serralves contradiz-se e diz tomou “medidas que permitem ao visitante a liberdade de escolha”, não justificando a existência de uma zona interdita a menores de 18 anos.
Entre a entrevista da semana passada e os últimos dias, João Ribas parece ter sido desautorizado, no que poderá ser a primeira manifestação pública de um ambiente de tensão entre a administração e a direcção artística que o PÚBLICO soube que existirá há já algum tempo.
O PÚBLICO não conseguiu obter junto da Fundação de Serralves um comentário à demissão apresentada pelo director de Serralves junto da fundação.
Entrada barrada
“Não será reservada uma sala à parte para as fotografias de teor mais sexual”, designadamente as da série X Portfolio, que mostram práticas sexuais com alusões explícitas a parafilias várias, incluindo o masoquismo, afirmara Ribas nessa entrevista ao Ípsilon. Mas foi precisamente isso que aconteceu. Uma opção tanto mais surpreendente quanto o director artístico não se limitara a garantir que não seguiria as práticas censórias de outros museus, designadamente nos Estados Unidos, onde exposições de Robert Mapplethorpe (1946-1989) chegaram a ser canceladas já depois da morte do fotógrafo.
O sucessor de Suzanne Cotter na direcção argumentara que as obras da série X Portfolio não eram “imagens violentas”, mas testemunho de “versões não normativas de prazer, de sedução, de dar e receber prazer”, e apenas podiam “não se enquadrar na sensibilidade dominante do que é um corpo normativo, ou de um corpo masculino que sai dos padrões de experiência heteronormativa e branca.”
E explicando que estas imagens, que datam maioritariamente dos anos 70, iriam integrar-se naturalmente na organização cronológica da exposição, defendeu: “um museu não pode condicionar, separar ou delimitar o acesso às obras, de dizer o que as pessoas podem ver ou não”. Que parece ter sido exactamente o que Serralves fez.
Consciente de que “as sensibilidades são múltiplas e reais”, Ribas já então adiantara, é certo, que os visitantes iriam encontrar “um aviso sensato e informativo, colocado à entrada da primeira sala”, referindo a “existência de certos conteúdos”. E assim acontece, de facto, não apenas no início do percurso expositivo, mas também num placard colocado junto à bilheteira, onde se pode ler: “Algumas obras da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures contêm imagens de natureza explicitamente sexual. A admissão de menores de 18 anos está condicionada à companhia de um adulto”.
Mas a porta que dá acesso à zona reservada não diz exactamente a mesma coisa. Aí lê-se: “Aviso. Alertamos para a dimensão provocatória e o carácter eventualmente chocante da sexualidade contida em algumas obras expostas. A admissão nesta sala está reservada a maiores de 18 anos”. E o PÚBLICO confirmou com a funcionária de plantão à porta que as instruções são mesmo para não deixar entrar menores de 18 anos, mesmo que acompanhados. Esta sexta-feira ao final da manhã ainda não tivera de barrar a entrada a ninguém, mas explicou que, em caso de dúvida, perceberia pelo bilhete, já que o dos menores de 18 anos é mais barato e tem uma aparência diferente.
Como esta discrepância entre os avisos poderia gerar equívocos, levando, por exemplo, a que um adulto que acompanhasse um menor comprasse bilhetes na convicção de que ambos poderiam ver a exposição toda, e só depois descobrisse quer afinal não era bem assim, o PÚBLICO colocou esta questão aos funcionários da bilheteira, que asseguraram que os visitantes que traziam menores eram verbalmente avisados de que parte das obras expostas era estritamente reservada a maiores de 18 anos.
"Nunca vi nada assim"
O decreto-lei 23/2014, invocado pela Fundação Serralves como estando na base da sua decisão, define o “regime de funcionamento dos espectáculos de natureza artística” bem como a sua classificação. A classificação é estabelecida pela Comissão de Classificação e entre os seus escalões está o “para maiores de 18 anos”, sendo que o artigo 25.º acrescenta que “os espectáculos e divertimentos públicos são ainda classificados ‘Para maiores de 18 anos – Pornográfico’ sempre que possuam conteúdos considerados pornográficos, de acordo com os critérios fixados pela comissão”. Em Serralves, a indicação à porta da sala de acesso condicionado indica apenas: “Aviso. Alertamos para a dimensão provocatória e o carácter eventualmente chocante da sexualidade contida em algumas obras expostas. A admissão nesta sala está reservada a maiores de 18 anos”, e não tem apensa a classificação com a categorização “pornográfico”.
No diploma constam ainda as obrigações dos promotores, que passam pela “comunicação prévia à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC)” com fim ao registo da existência destes eventos, mas também a definição dos vários limites etários que constam da classificação das obras. A classificação etária é obrigatória e “consiste em aconselhar a idade a partir da qual se considera que o conteúdo não é susceptível de provocar dano prejudicial ao desenvolvimento psíquico ou de influir negativamente na formação da personalidade dos menores”, lê-se no artigo 22.º. Também detalha que a idade dos menores deve ser atestada por documento “ou suprida pela responsabilização dos pais ou de um adulto identificado que os acompanhe”. O PÚBLICO não conseguiu esclarecer junto de Serralves se a comissão de classificação da IGAC tinha sido consultada.
Não deixa também de ser um tanto paradoxal que, ao mesmo tempo que proíbe a menores as imagens de sexualidade explícita de Mapplethorpe, Serralves se limite a aconselhar “acompanhamento por um familiar ou adulto” aos menores que queiram ver, na segunda parte da exposição dedicada à colecção Sonnabend, igualmente patente no museu, uma peça como Red Doggy (Canzana), que consiste numa imagem deveras explícita, em grande formato e a cores, do artista Jeff Koons a penetrar por trás a artista porno Cicciolina.
"Nunca vi nada assim. Não me lembro de nenhuma exposição que barrasse a entrada a menores de idade em determinadas salas por causa dos conteúdos", disse ao PÚBLICO um ex-dirigente do Ministério da Cultura ligado aos museus que pediu para não ser identificado. Como Serralves é uma fundação privada (embora tenha fundos públicos), "também não há nada que a impeça de tomar essa decisão", embora a mesma fonte não conheça legislação específica sobre a limitação aplicada às exposições.
Notícia alterada às 11h35 de 24 de Setembro para trocar "classificada" por "consultada" no trecho que se refere à Inspecção-Geral de Actividades Culturais.