Património dos Francos é multimilionário. "Foi extorsão e roubo"

Para além de tentar impedir a exumação do corpo de Francisco Franco, a família do ditador está envolvida noutro campo de batalha: o da salvaguarda do património herdado, que foi acumulado durante os anos de ditadura e através de uma rede de corrupção e expropriação.

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Pazo de Meirás, residência de férias dos Franco, em Sada, na Galiza DR

A exumação do corpo de Francisco Franco do Vale dos Caídos é a parte mais mediática do processo de “ajuste de contas” com a ditadura que o Governo socialista espanhol iniciou. A família do ditador tenta combater esta decisão. Mas há meses que os descendentes do "Generalíssimo" entraram noutro campo de batalha: o da salvaguarda do património multimilionário acumulado pelo ditador e que agora está a ser reivindicado por agentes políticos e pela sociedade civil espanhola.

Desde que o executivo de Pedro Sánchez subiu ao poder, em Junho, depois de derrubar o Governo de Mariano Rajoy (PP, direita), Espanha voltou a olhar para o seu passado. O objectivo é exorcizar os fantasmas que ainda existem da sangrenta Guerra Civil Espanhola e da ditadura franquista. Parte do património dos Francos, é uma das pontas soltas que estão a ser puxadas.

Em Dezembro, a filha única e herdeira de Francisco Franco, Carmen Franco, morreu aos 91 anos. E o património do “caudilho” ficou de novo visível e voltou à agenda política.

Os casos mais controversos são o Pazo de Meirás (pazo designa, na Galiza, uma casa nobre, normalmente de campo, que foi residência de pessoas relevantes para a comunidade), em Sada, perto da cidade galega de Corunha; duas esculturas que pertenciam ao Pórtico da Glória da Catedral de Santiago de Compostela; e o palácio de Cornide, também em Corunha.

Casada com Cristóbal Martínez-Bordiú, Carmen teve sete filhos (Carmen, Francis, Mariola, Merry, José Cristóbal, Jaime e Arancha). São eles que têm a responsabilidade de gerir a herança deixada pela mãe, conhecida por controlar com pulso firme e rigor todo o património.

Mas como conseguiu o militar sem fortuna Francisco Franco que casou com uma rapariga de família abastada, acumular o património que está agora nas mãos dos netos? É uma pergunta para a qual historiadores e investigadores tentaram encontrar resposta nos últimos anos. As respostas que encontraram estão, agora, a servir de argumento para que algumas localidades de Espanha reclamem a devolução dos muitos imóveis e obras nas mãos da família do ditador.

Um dos epicentros desta disputa é a Galiza, região onde nasceu Franco, no município de Ferrol. Uma das forças políticas galegas mais activas neste campo é a coligação de esquerda En Marea (Em Maré). Na semana passada, o En Marea levou o problema a Madrid e apresentou no Congresso Nacional uma proposta para a criação de uma comissão para investigar o património dos Francos. A proposta foi aprovada pelos deputados.

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Palácio Cornide, no centro histórico da Corunha DR

“Houve uma extorsão, um roubo”, diz ao PÚBLICO Antón Sánchez, porta-voz do En Marea, sobre as posses dos Francos. “Esta é mais uma demonstração da impunidade de que ainda goza a família Franco.”

Ditadura como fonte de riqueza

Tudo começa com o eclodir da Guerra Civil Espanhola em 1936, que se abriu com um golpe de Estado dirigido pelo futuro ditador. À medida que as tropas nacionalistas de Franco ganhavam terreno aos republicanos, iam-se fazendo expropriações. Mas os bolsos do “caudilho” começaram a ficar verdadeiramente cheios assim que conseguiu a vitória, em 1939, e quando fundou o novo regime que só desapareceu com a sua morte, em 1975.

Logo no ano da vitória, Getúlio Vargas, Presidente do Brasil, doou a Espanha 600 toneladas de café. O historiador Ángel Viñas, no livro La otra cara del Caudillo (A outra cara do Caudilho), publicado em 2015 e que se centra na forma como Franco acumulou fortuna, diz que o ditador revendeu o café oferecido ao país.

O café escasseava na Espanha do pós-guerra. O café brasileiro foi distribuído, através do organismo estatal que geria o abastecimento e transportes, aos governos regionais para que o vendessem à população ao preço fixado pela administração central (12,48 pesetas por quilo).

Segundo um documento do arquivo do Palácio Real espanhol consultado por Viñas, a venda do café rendeu 7,5 milhões de pesetas, que equivalem a perto de 85,6 milhões de euros actualmente. Ora em 1940 este foi o exacto valor que, segundo a investigação do historiador, entrou nas contas pessoais de Franco.

“Não vejo a razão para Vargas fazer um donativo a Franco a título pessoal, de ditador para ditador. Certamente que não imaginava que Franco iria beber todo o café que pode ser obtido com 600 toneladas de grão. Por isso, o mais provável é que o tenha oferecido para benefício do povo e do Estado espanhol”, explicou Viñas ao El País.

O historiador desvendou também que o ditador recebia um “donativo mensal” de dez mil pesetas por parte da Companhia Telefónica Nacional, a Telefónica. Não é claro, porém, a partir de quando começaram a ser realizados estes donativos mensais nem quando terminaram.

Alguns historiadores suspeitam que Franco também terá ficado com parte das doações para a “causa nacional” dos apoiantes dos nacionalistas durante a guerra.

Viñas conclui que, em 1940, o "Generalíssimo" já tinha nas suas contas qualquer coisa como 34 milhões de pesetas (o que hoje quivale a mais de 300 milhões de euros). 

Mas esta foi apenas uma primeira etapa. O jornalista e escritor Mariano Sánchez também investigou a fortuna de Franco. No seu livro Los Franco S.A., datado de 1990, conclui que os 36 anos de franquismo valeram ao ditador uma fortuna — avaliada sobretudo pelo número de imóveis na sua posse — que ronda hoje entre os 500 e os 600 milhões de euros. E que os seus descendentes herdaram.

O jornalista diz ainda que Carmen Franco e o marido — Franco casou a filha com um aristocrata, o 10.º marquês de Valverde — tinham, em 1975, 22 propriedades (21 em Espanha e uma em Miami).

Pazo de Meirás no centro

A maior parte destas propriedades, dizem as investigações feitas à origem deste património, chegaram à posse de Franco através de uma rede de expropriações forçadas e corrupção.

“Há anos que a sociedade civil da Galiza está a mobilizar-se para exigir a devolução do Pazo de Meirás”, explica ao PÚBLICO Antón Sánchez. “Houve uma extorsão, pressão sobre os vizinhos – organizada pelas autoridades franquistas – para os obrigarem a entregarem as suas terras”.

O Pazo de Meirás, que acabou a dar um título à mulher de Franco, conhecida como senhora de Meirás, é, desde 1939, ano em que entrou para a posse do ditador, a residência de férias da família. 

No ano passado, o historiador Manuel Pérez Lorenzo e o investigador Carlos Babío Urkidi apresentaram o livro Meirás. Un pazo. Un caudillo. Un expolio (Meirás. Um pazo. Um caudilho. Um saque). A obra, de mais de 400 páginas, é o resultado de mais de 20 anos de investigações e revela como Franco se apropriou desta e outras propriedades.

O Pazo de Meirás foi “doado” a Franco logo em 1938. “Foi uma doação promovida pelas elites da Corunha, confirmada com subscrições num contexto de dura repressão e sem carácter voluntário na maioria dos casos”, explica Manuel Pérez em entrevista ao jornal online eldiario.es.

“Estabelece-se como uma doação no ano de 1938 e, inclusivamente, há um acto de entrega, mas não se regista nesse momento no Registo de Propriedade. Isso só acontece em 1941, que é quando se formaliza a transacção e já não uma doação. Faz-se um contrato de compra e venda entre Franco e a herdeira da escritora Emilia Pardo Bazán (anterior proprietária). Faz-se como se fosse uma operação entre particulares e isso é o que consta para efeitos legais, ainda que saibamos que não foi nada assim”, continua o autor.

A “doação” resultou de pressões e de ameaças organizadas pelas autoridades franquistas para que os galegos assinassem as tais “subscrições voluntárias”. Mas não só. Ao terreno original do Pazo juntaram-se terrenos vizinhos através de expropriações forçadas. Ao todo, a propriedade cresceu para os 6.6 hectares que tem hoje.

Além disto, o imóvel foi gerido como se de um edifício público se tratasse, pois servia de residência de férias do chefe de Estado. Ou seja, os gastos e as várias obras e remodelações foram custeadas pelo erário público. Mas a casa e a propriedade estava em nome de Francisco Franco e, por isso, quando do ditador morreu, foi herdado pela filha.

Em 2008, o Pazo de Meirás foi considerado Bem de Interesse Cultural (BIC), apesar da oposição da família que não queria abri-lo ao público pelo menos quatro dias por mês, como manda a lei – os Francos chegaram a ser multados por não respeitarem esta norma. E em Julho deste ano, o parlamento galego aprovou por unanimidade um pedido à Junta da Galiza para que inste o Governo espanhol a iniciar todas as medidas legais necessárias para que o Pazo de Meirás passe para as mãos do Estado.

Já este ano, uma comissão de juristas, criada a pedido do governo da Galiza, concluiu que deve ser o Património Nacional, organismo responsável pelos bens do Estado espanhol, a contestar nos tribunais o contrato de compra e venda assinado por Franco para a aquisição do Pazo de Meirás por ser fraudulento e por violar a Lei do Património. No entanto, fontes do organismo revelaram que a via judicial não está em cima da mesa.

Pouco tempo depois da divulgação destas conclusões, os herdeiros puseram o Pazo de Meirás à venda, através de uma agência imobiliária, por oito milhões de euros. A propriedade foi já avaliada em 14 milhões.

À venda está também um prédio da rua madrilena Hermanos Bécquer, no bairro de Salamanca, uma das zonas mais caras da capital espanhola. Num dos apartamentos viveu e morreu Carmen Franco.

Esculturas da Catedral de Santiago

Como explicam os autores do livro, Francisco Franco e a mulher apropriavam-se de tudo o lhes apetecia, de tudo o que gostavam.

Foi o caso das duas esculturas, cuja datação está entre 1188 e 1211 e que, segundo alguns especialistas, representam Abraão e Isaac. Estavam no Pórtico da Glória da Catedral de Santiago de Compostela.

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Uma das esculturas que pertenciam à Catedral de Santiago de Compostela DR

Nos anos de 1960, numa visita a Santiago, as esculturas de quase 1.80 metros de altura chamaram a atenção dos Francos – o governo galego simplesmente deu-lhas. Agora, a autarquia de Santiago reclama-as e argumenta que não existe qualquer registo sobre esta “doação”.

As duas esculturas estiveram durante alguns anos no Pazo de Meirás. Depois, foram levadas para o palácio de Cornide, no centro histórico da Corunha. Mais recentemente, os Francos cederam-nas para serem expostas, temporariamente, no Museu do Prado, em Madrid, e no museu da Catedral de Santiago – a sua morada original. Pensa-se que estarão de novo em Meirás.

No ano passado, a autarquia de Santiago enviou um requerimento à família Franco para devolver as esculturas. Semanas depois, o Congresso espanhol aprovou por unanimidade um pedido ao Governo de Mariano Rajoy para que levasse "a cabo as acções pertinentes” com vista à sua devolução.

Outra das propriedades herdadas pelos sete netos do “caudilho” é a quinta La Piniella, a 20 quilómetros de Oviedo, com cerca de 50 hectares. Foi posta à venda por cinco milhões de euros.

Com uma herança para dividir e com a polémica sobre a origem dos bens a ganhar volume nos últimos meses, a venda das propriedades acelerou por parte da família. E são muitos os que receiam que, se os negócios se concretizarem, as devoluções não aconteçam. “A venda a terceiros dificultaria muito a devolução”, explica Antón Sánchez. 

O dirigente do En Marea pede que a Lei da Memória Histórica, de 2007, criada pelo  Governo socialista de José Luis Zapatero, e que Pedro Sánchez pretende reactivar e ampliar, seja alterada para incluir a devolução do património que está agora na posse dos netos de Franco.

“Há uma oportunidade com a mudança do Governo de Madrid. Com o processo iniciado por este Governo, com a exumação de Franco, pode haver uma oportunidade. Pedimos ao Governo de Sánchez a devolução do Pazo de Meirás para uso público", continua Sánchez que não cede na sua luta contra o que diz o roubo e a extorsão de Franco. "A família manter este imóvel... Há muito para fazer relativamente à memória histórica”.