Marcelo Brodsky contra o fim da história (e a letargia da memória)
Há quem teime em não deixar as imagens quietas. O artista e activista argentino é um deles. Em 1968: O fogo das ideias, exposição que esta quinta-feira abre ao público no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, este irrequieto criador de imagens tenta acordar ideais do passado de formas “atraentes” para despertar a consciência política de novas gerações.
Já há pouco de fotógrafo em Marcelo Brodsky. Se é na fotografia que estão os pilares quer da sua formação quer do seu trabalho, é sobretudo no campo aberto da imagem que prefere jogar os seus trunfos, convocando a sua arte de remexer no passado para tentar espicaçar o presente. Na apresentação à imprensa de boa parte do seu trabalho mais recente que decorreu esta terça-feira no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, o argentino, misto de artista e activista dos direitos humanos (não necessariamente por esta ordem), demonstrou também como se sente bem a criar imagens para além das imagens físicas colocadas na parede. Ao falar do seu trabalho, a voz de Brodsky impõe-se no espaço; às vezes gesticula de maneira exuberante, faz pausas teatrais, arregala os olhos, desmonta e explica processos de trabalho, desvenda pequenas histórias que se escondem por detrás das imagens que escolheu para 1968: O fogo das ideias, a sua primeira exposição em Portugal, acrescentando mais uma camada às muitas camadas que elas já têm. Acrescentando, de maneira performativa, imagens às imagens.
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Já há pouco de fotógrafo em Marcelo Brodsky. Se é na fotografia que estão os pilares quer da sua formação quer do seu trabalho, é sobretudo no campo aberto da imagem que prefere jogar os seus trunfos, convocando a sua arte de remexer no passado para tentar espicaçar o presente. Na apresentação à imprensa de boa parte do seu trabalho mais recente que decorreu esta terça-feira no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, o argentino, misto de artista e activista dos direitos humanos (não necessariamente por esta ordem), demonstrou também como se sente bem a criar imagens para além das imagens físicas colocadas na parede. Ao falar do seu trabalho, a voz de Brodsky impõe-se no espaço; às vezes gesticula de maneira exuberante, faz pausas teatrais, arregala os olhos, desmonta e explica processos de trabalho, desvenda pequenas histórias que se escondem por detrás das imagens que escolheu para 1968: O fogo das ideias, a sua primeira exposição em Portugal, acrescentando mais uma camada às muitas camadas que elas já têm. Acrescentando, de maneira performativa, imagens às imagens.
Ao percorrer os nichos e o longo corredor da sala de exposições do piso -1, vamos percebendo como Marcelo Brodsky — que mostrou uma versão mais reduzida desta exposição nos Encontros de Fotografia de Arles deste ano em França, que assinalaram o cinquentenário do Maio de 68 — gosta de se meter em encruzilhadas, talvez muito pelo desafio retrospectivo de compreender o caminho que percorreu até sair delas. O que quer dizer que também há muito pouco de linearidade na sua atitude e no seu gesto criativo, como o demonstram as várias “conversas” e as várias ligações que, em conjunto com a comissária Inês Valle, o artista argentino foi criando para esta exposição em Lisboa (“A arte e a vida andam juntas”). É um ziguezaguear que não retira um centímetro à coerência ou à pujança da mensagem geral da exposição: a de que vale a pena olhar para a marcha do passado para incentivar a inquietude hoje, como um aguilhão que se serve da imagética e do ideário da rebelião como forma de levantamento perante a opressão, a repressão, a perseguição ou a censura.
O primeiro (e mais intenso) desses diálogos é com a obra do poeta e artista conceptual belga Marcel Broodthaers (1924-1976), pela qual Brodsky tem grande admiração. Tanta que se misturou nela. Mas já lá vamos. Antes disso, no processo de escolha das obras de Broodthaers pertencentes ao MACBA que iriam viajar de Barcelona para esta exposição houve “uma coincidência”. A dupla artista/curadora descobriu um trabalho do artista belga, L'art et les mots (1973), que encaixa na perfeição no gesto criativo “intervencionista” de Brodsky nas imagens de activismo, inconformismo e revolta que dão corpo a 1968: O fogo das ideias. Tal como Broodthaers decidiu destacar pela cor uma ou outra palavra no meio de uma sopa delas (o conjunto é formado por nove quadros), Brodsky sublinha detalhes, pinta símbolos, risca e acrescenta novos slogans e, sobretudo, sobrepõe palavras às imagens. Ao lado de L'art et les mots um rapaz atira pedras à frente de um grupo de manifestantes numa rua de Paris, num gesto que haveria de se tornar icónico da grande revolta estudantil, primeiro parisiense, depois de outros lugares do mundo. No chão, Brodsky escreveu palavras de ordem. Agora, ao olhar para as duas obras justapostas no Museu Berardo, manifesta um espanto sincero: “Eu nem conhecia esta obra… é uma coincidência, mas não é casual, nada é casual… há várias palavras na minha imagem – ‘liberdade’, ‘revolta’, ‘rua’, ‘violência’, etc – que estabelecem um diálogo muito interessante com esta obra de Broodthaers também feita de palavras.” Embora Brodsky sublinhe algumas “coincidências” e uma estarrecida admiração pelo belga, a familiaridade entre os dois artistas torna-se mais evidente naquilo que não é sequer imediatamente visível: uma postura irrequieta em relação ao que está placidamente instituído (o museu enquanto elefante branco foi um dos principais alvos de Broodthaers); uma veia questionadora perante visões monolíticas; uma reacção à passividade, ao conformismo ou à aceitação cândida de verdades absolutas, quer se trate de arte ou de outra coisa qualquer.
Esta teimosia de querer dizer algo, de manifestar opiniões ou visões da realidade perante as mais difíceis circunstâncias é a pedra de toque de Project pour une conversation (2018), uma sequência de nove fotografias mostrada agora pela primeira vez, na qual Brodsky estabelece um diálogo com o vídeo La Pluie (Project pour un texte) (1969), de Broodthaers, fixando a sua silhueta sobre a projecção desta obra na Bienal de Lyon que decorreu no final do ano passado, onde as obras dos dois artistas estiveram presentes. Em La Pluie, o belga teima em escrever num papel uma mensagem, apesar de fustigado pela chuva, um gesto de resiliência a que o argentino faz vénia, não só com esta série de fotografias (num confronto sempre estimulante e tenso entre imagem fixa e a imagem em movimento), como num vídeo em que mimetiza esse gesto criativo.
Contar a história
Em 1968… somos inundados por texto. E pode até parecer paradoxal, mas Brodsky acredita mais nas imagens do que nas palavras. Pelo menos hoje, num tempo em que as primeiras parecem não só ter ganha a batalha da atenção (e da contemplação), como estar próximas de um estatuto de narrador exclusivo. “Se as novas gerações não tiverem imagens não prestam atenção. Para mim, a história só pode ser contada se se partir de uma imagem; se se partir apenas de palavreado não há interesse, eles nem vêem; se não houver imagem, passam a outra coisa que tenha imagem. Então, se a única forma de contar a história é pelas imagens, é preciso desenvolver uma linguagem que inclua palavras e imagens, que seja capaz de atrair. Este é um trabalho sobre 1968, mas é também uma investigação sobre a linguagem, sobre como contar a história, que tanto vale para 68 como para qualquer outro assunto.”
Certo é que as imagens que Marcelo Brodsky escolheu para 1968… estão povoadas de palavras, mesmo que soltas, em jeito de slogan, como legenda, pequeno ensaio, clarificação, releitura ou actualização do que pode ser visto nas fotografias. Este exercício de apropriação acompanha-o desde que se lançou na criação artística, depois de muitos anos a dirigir uma agência de fotografia voltada para o território da América do Sul. Desde Buena Memoria (1996), porventura a sua obra mais conhecida, que investiga e problematiza o destino dos seus colegas de turma no Colegio Nacional de Buenos Aires em 1967 (entre eles há assassinados, desaparecidos, exilados, traumatizados…), Brodsky não mais largou a procura das imagens “com potencial narrativo suficiente para que sejam postas em diálogo com textos a si inerentes ou alheios” (Florencia Battiti). Em 1968: O fogo das ideias – corpo de trabalho que começou a ser erguido em 2014 a partir de uma imagem de uma manifestação motivada pelo desaparecimento de 43 estudantes em Ayotzinapa, no estado de Iguala, no México –, o artista argentino revisita os protestos sociopolíticos de estudantes e trabalhadores ocorridos nos anos 60, que vão da Poor People’s March, em Washington, às manifestações contra a Guerra do Vietname que ocorreram em Berlim, Londres ou Tóquio, passando pelas múltiplas e geograficamente diversificadas manifestações e campanhas estudantis contra as estruturas governamentais de então no Brasil, na Argentina, na Colômbia, na Alemanha, no México, no Uruguai, em Moçambique, no Senegal, na Austrália e em Portugal, entre muitos outros.
Para a exposição em Lisboa, Brodsky criou especificamente várias obras, que abordam desde a revolta estudantil coimbrã de 1969, aos levantamentos independentistas nos países africanos ainda sob domínio colonial. Para além de dezenas de edições do Diário de Lisboa de 1968, que ajudam a contextualizar a forma como Portugal se via e se colocava perante o mundo, numa altura em Salazar abandonava o poder, há uma instalação sonora com discursos de líderes da época (Che Guevara, Herbert Marcuse, Rudi Dutschke…), onde a palavra (e só ela) ajuda a potenciar imagens. Duas curtas-metragens produzidas para a televisão argentina, mas nunca transmitidas, Ley Mordaza e Snowden, alertam para os perigos do controlo apertado e da vigilância excessiva.
Um traço comum a todas as séries é a impertinência, no sentido da recusa da letargia e do acomodamento. Nas palavras de Inês Valle, trabalhos como o de Marcelo Brodsky provam que o mundo não ficará melhor se o deixarmos estar.