Perguntar a origem étnico-racial é discriminação?
A retirada de um inquérito em algumas escolas onde se dava como alternativa ser cigano ou português gerou queixas de racismo. Governo criou grupo de trabalho para debater como incluir no Censos 2021 uma pergunta sobre origem de cidadãos, mas opiniões dividem-se.
O ano lectivo arrancou com uma polémica por causa de um inquérito distribuído em algumas escolas em Lisboa e no Porto. A pergunta sobre a origem dos alunos, dando como alternativa as opções “portuguesa, cigana, chinesa, africana, Europa de Leste, indiana, brasileira ou outra” gerou queixas de racismo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O ano lectivo arrancou com uma polémica por causa de um inquérito distribuído em algumas escolas em Lisboa e no Porto. A pergunta sobre a origem dos alunos, dando como alternativa as opções “portuguesa, cigana, chinesa, africana, Europa de Leste, indiana, brasileira ou outra” gerou queixas de racismo.
Em causa está o facto de a pergunta colocar em alternativa ser português ou ser cigano, como se as duas identidades se excluíssem mutuamente. Mas não só: o simples facto de fazer a pergunta é considerado discriminatório por alguns, incluindo académicos e membros de comunidades discriminadas. É por isso que, neste momento, há um grupo de trabalho nomeado pelo Governo para debater a recolha deste tipo de informação no Censos 2021, seguindo recomendações das Nações Unidas para que Portugal a faça bem como as exigências de alguns grupos activistas, com o objectivo de emitir uma recomendação no final.
Na terça-feira, a Direcção-Geral de Educação (DGE) mandou retirar os inquéritos que já tinham chegado a algumas escolas. A Fundação Belmiro de Azevedo, que financiava o projecto, suspendeu o apoio. O presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), Pedro Calado, abriu um procedimento interno depois de saber do questionário. E a empresa responsável pelo estudo pode vir a pagar uma multa. A secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, referiu à Lusa: "Há aqui um erro e tem de se apurar o que aconteceu."
Parte de um estudo organizado pela CLOO, empresa de consultadoria em economia comportamental, o inquérito tinha como objectivo "encontrar estratégias eficazes para os pais se envolverem na leitura com os filhos". Segundo a DGE, que aprovou o inquérito, o documento foi avaliado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) que mandou retirar as questões relacionadas com a origem dos estudantes. A CLOO refere que a versão enviada às escolas foi a errada e que a autora do estudo, Diana Orghian, está a tomar as diligências para garantir “que um lapso desta natureza não volte a acontecer”.
Para o activista cigano Piménio Ferreira, do SOS Racismo, o problema está na forma como as perguntas estão formuladas, fazendo "lembrar o Estado Novo". É preciso pensar que categorias se utilizam — se as de nacionalidade ou as de origem étnico-racial ou até as duas — mas o importante é separar as duas, afirma. "Também não sabemos para quê, com que objectivo é que o inquérito está a ser feito. Quando leio que é para uma [empresa de] consultadoria fico ainda mais perplexo."
Grupo de trabalho só agora formalizado
O activista concorda, porém, com a recolha de dados étnicos no Censos 2021, um instrumento que considera importante. Os defensores dizem que os dados permitem aferir desigualdades da saúde à educação, da justiça ao emprego de modo a desenvolver depois políticas públicas para as combater.
Há um ano o então ministro-adjunto, Eduardo Cabrita, criou um grupo de trabalho (GT) para discutir a introdução no Censos 2021 de uma pergunta que aferisse a composição étnico-racial da população. A questão é tão complexa que a formalização do GT só ficou oficializada em despacho a 3 de Agosto deste ano. O GT já teve seis reuniões, segundo a secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, que passaram pelo enquadramento sobre as possibilidades e limitações no contexto da intervenção do INE, reflexão sobre a tipologia de eventuais perguntas e categorias ou definição de metodologias participativas, abertas à discussão fora do GT.
Com este despacho define-se, assim, finalmente, que o GT irá estudar cenários para a inclusão da pergunta no Censos, sublinha um dos seus membros, a socióloga Cristina Roldão. Isto porque a determinada altura estava a ser contestada entre alguns membros do grupo esta hipótese. Por exemplo, na ala dos cépticos do GT, o sociólogo João Peixoto defende que “o que ganhamos a nível de estatísticas oficiais não compensa os potenciais problemas que podemos causar” com a pergunta, nomeadamente a “reificação de categorias do uso do senso comum”. Também Maria José Casa-Nova, Coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, partilha aquelas preocupações. "É necessário pensar na construção de categorias que não caiam na armadilha de sustentar a discriminação existente, perpetuando-a. É esta preocupação que importa ter em mente quando se reflecte sobre o tipo de categorização a incluir nos Censos", afirma.
Membro do GT como representante eleito pelos Movimentos e Colectivos Afrodescendentes, José Semedo Fernandes considera que a pergunta do inquérito escolar é um exemplo a não seguir no Censos porque “os ciganos não são estrangeiros”.
Perguntar mas preparar
Para Cristina Roldão, que defende a inclusão da pergunta no Censos 2021, é perigoso aplicar um inquérito escolar deste género sem que decorra de uma orientação a nível nacional e uma discussão pública anterior: deve ser “acompanhada de uma explicitação dos seus objectivos e inequivocamente servir a promoção da igualdade étnico-racial e o combate ao racismo”.
Por outro lado, chama a atenção para a necessidade de anonimato neste tipo de questionário: “Uma coisa é ser feito pelo INE, que é especializado. Outra é ser uma empresa. Não deveriam os pais ser informados? E saber para que é que vai servir a recolha?”
José Semedo Fernandes confessa que a pergunta polémica não o espanta: “No ano passado, num livro do meu filho do 2.º ano a explicar o que era a naturalidade e a nacionalidade, apareciam três crianças: uma branca a dizer que tinha nascido em Portugal e era portuguesa, outra mais escura a dizer que os pais eram brasileiros e uma terceira mais escura a dizer que tinha nascido em Portugal, que os pais eram angolanos e ela também. O meu filho ficou confuso porque é descendente de africanos e português. Mas esta é a maneira como o sistema se apresenta.”