Coisas secretas

Um filme que deixa o espectador completamente livre. Pode entendê-lo como quiser, pode até recusá-lo liminar e rapidamente — dir-se-ia que Beduino também prevê essa hipótese.

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Quatro anos depois da estreia de A Erva do Rato, volta a aparecer um filme de Júlio Bressane nos cinemas portugueses. Quem viu esse filme (e mesmo que tenha visto mais nada de Bressane) não estranhará Beduino, que tem muito de um prolongamento de A Erva do Rato: é outra vez centrado na figura de um casal, praticamente excluindo quaisquer outras personagens, e uma maneira de o encarar é vê-lo não como umas cenas da vida conjugal (Bergman tem “realismo” a mais para Bressane), mas como umas cenas dum teatro conjugal (porque Bressane também poderia dizer, como Oliveira, que o teatro é tudo o que o cinema pode filmar, e porque Beduino evita o realismo mimético, construindo uma realidade autónoma fundada na materialidade dos seus artifícios). Os primeiros momentos fazem logo esse anúncio: a câmara movimenta-se com uma cache propositadamente tosca (parece um bocado de cartão recortado) por cima da lente, a desenhar a forma de um buraco da fechadura. Equivale ao no trespassing do Citizen Kane (um aviso de que vamos entrar em “transgressão”), equivale à imediata assunção da presença da câmara, portanto do aparelho cinematográfico, assim expelindo quaisquer expectativas de um naturalismo clássico.

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Quatro anos depois da estreia de A Erva do Rato, volta a aparecer um filme de Júlio Bressane nos cinemas portugueses. Quem viu esse filme (e mesmo que tenha visto mais nada de Bressane) não estranhará Beduino, que tem muito de um prolongamento de A Erva do Rato: é outra vez centrado na figura de um casal, praticamente excluindo quaisquer outras personagens, e uma maneira de o encarar é vê-lo não como umas cenas da vida conjugal (Bergman tem “realismo” a mais para Bressane), mas como umas cenas dum teatro conjugal (porque Bressane também poderia dizer, como Oliveira, que o teatro é tudo o que o cinema pode filmar, e porque Beduino evita o realismo mimético, construindo uma realidade autónoma fundada na materialidade dos seus artifícios). Os primeiros momentos fazem logo esse anúncio: a câmara movimenta-se com uma cache propositadamente tosca (parece um bocado de cartão recortado) por cima da lente, a desenhar a forma de um buraco da fechadura. Equivale ao no trespassing do Citizen Kane (um aviso de que vamos entrar em “transgressão”), equivale à imediata assunção da presença da câmara, portanto do aparelho cinematográfico, assim expelindo quaisquer expectativas de um naturalismo clássico.

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E depois, são ficções sobre ficções, encenações sobre encenações, representações sobre representações, à medida em que a mulher e o homem vão fazendo suceder diferentes versões (como diferentes “filmes”, até) de uma vida que pode ser imaginada ou vivida mas que é sempre transformada pelas grandes máquinas artificiosas que são a câmara e a mise en scène de Bressane. Como A Erva do Rato, suscita a mesma colocação do realizador brasileiro como vértice de um triângulo que teria nos outros vértices Jean-Claude Brisseau (a feérie erótica, a alucinação, feitas com muito pouco: dois actores, uma casa, efeitos de câmara e de iluminação) e evidentemente Oliveira, pelo que já se disse acima (o teatro como única aspiração possível do cinema) mas sobretudo porque, como no cineasta português, a maior volúpia erótica parece nascer no relacionamento profundamente físico entre a luz e a sombra, o mostrado e o escondido, os actores e o espaço, as vozes e o texto (é reparar na dicção “carnívora” de Alessandra Negrini, actriz regular dos últimos anos de Bressane). Para que essa volúpia tenha uma expressão ainda mais rica, Bressane monta excertos de outros filmes (algumas imagens de animais, que parecem vir de um documentário sobre a naureza), incluindo filmes seus dos anos 70, todo o granuloso esplendor da textura (e da cor) da película de super 8 ou 16 mm a “dialogar” com a imagem “limpa” do digital em que foi feito o essencial do filme.

Nisto tudo, é um filme que deixa o espectador completamente livre. Pode entendê-lo como quiser, pode até recusá-lo liminar e rapidamente — dir-se que Beduino também prevê essa hipótese e não a leva a mal. Mas é um filme tão “fora”, tão “desirmanado” no contexto da produção contemporânea (a sua família são as “avant-gardes” dos anos 20 e 30, eventualmente revistas pelo underground americano de 60 e 70), que seria uma pena que o espectador não lhe desse, ao menos, uma chance: em Beduino vive o feitiço das “coisas secretas”.