O jesuíta que mudou a física e a engenharia em Portugal

As aulas do Hendrick Uwens em Lisboa constituíram o primeiro curso completo de física em Portugal e incluíam o estudo de máquinas simples, como roldanas, e o plano inclinado. O livro de apoio a estas aulas era o Tratado da Estática, de 1645.

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Proposição onde Uwens mostra a equivalência entre um sistema de roldanas e um sistema de balanças

A mecânica, a par da astronomia, teve um papel crítico nas transformações do século XVII, a que convencionalmente se chama “revolução científica”. A filosofia deu lugar à matemática, como forma de estudar a natureza, e a nova visão mecânica do mundo levou a rápidos avanços tecnológicos. No entanto, sabe-se muito pouco sobre estas transformações em Portugal, o que não impediu alguns historiadores de descrever negativamente o papel do nosso país. Como se verá, também se estudou mecânica no Portugal de Seiscentos, mas não nos locais ou instituições onde se esperaria.

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A mecânica, a par da astronomia, teve um papel crítico nas transformações do século XVII, a que convencionalmente se chama “revolução científica”. A filosofia deu lugar à matemática, como forma de estudar a natureza, e a nova visão mecânica do mundo levou a rápidos avanços tecnológicos. No entanto, sabe-se muito pouco sobre estas transformações em Portugal, o que não impediu alguns historiadores de descrever negativamente o papel do nosso país. Como se verá, também se estudou mecânica no Portugal de Seiscentos, mas não nos locais ou instituições onde se esperaria.

Em 1641 o jovem matemático Hendrick Uwens (1618-1667), de origem flamenga, chegou ao porto de Lisboa com a intenção de partir para as missões jesuítas no Oriente. Tinha entrado com 16 anos para a Companhia de Jesus na Flandres e, a meio da formação, dedicou-se exclusivamente a estudar matemática com os melhores matemáticos aí estabelecidos. A sua ideia era ser ordenado sacerdote em Lisboa e, ao fim de um ano, partir para o Oriente. No entanto, só ao fim de seis anos deixou Portugal, onde ensinou matemática com sucesso. Na Índia, foi colocado no Colégio Jesuíta em Agra, capital do império islâmico mogul. O imperador, que tinha promovido projectos tão imponentes como o Taj Mahal, interessou-se pela matemática de Uwens, que se tornou muito próximo da corte islâmica.

A Flandres tinha algumas das principais escolas jesuítas de matemática — uma disciplina que no século XVII incluía a mecânica, astronomia e outras áreas que hoje associamos à física moderna. Assim, os jesuítas tornaram-se os principais responsáveis pelo uso generalizado da matemática no estudo da natureza. Figuras como Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650) tiveram alguns desses matemáticos como seus mentores, e os livros de estudo escritos pelos jesuítas disseminaram o uso da matemática por todo o mundo. O mesmo sucedia em Portugal, pelo menos desde 1590, quando os jesuítas fundaram a Aula da Esfera, no Colégio de Santo Antão em Lisboa. A Companhia de Jesus tinha um interesse especial nesta aula, ao ponto de enviar matemáticos de toda a Europa para aí ensinar. A posição geográfica de Lisboa era fundamental para a divulgação da ciência nas missões do Oriente, mas o seu principal interesse era o serviço que prestava à Coroa, ao instruir-se fidalgos em matemática utilizando a língua portuguesa, em vez do latim. Estes homens viriam a ter um papel importante na navegação, engenharia militar e arquitectura, o que foi reconhecido pela Coroa, ao nomear a Aula da Esfera como “Real Academia de Matemática”.

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Tabela onde Uwens mostra a proporção entre a densidade de diferentes materiais, após explicar o princípio de Arquimedes.

As aulas do jesuíta Uwens em Lisboa constituíram o primeiro curso completo de física — em termos modernos — em Portugal e incluíam o estudo de máquinas simples, como roldanas, e o plano inclinado. O livro de apoio a estas aulas, o Tratado da Estática (1645), incluía também o cálculo de centros de gravidade e sua aplicação no estudo do movimento animal, uma área inovadora hoje chamada “biomecânica”. Noutros capítulos, Uwens ensinou mecânica de fluidos: apresentou uma versão sofisticada do princípio de Arquimedes (força de impulsão) acompanhada de um método para calcular densidades de diferentes materiais. Explicando o movimento de água em sifões, Uwens refutou os erros de filósofos que não acreditavam na existência do vácuo. Também aqui Uwens explicou que vasos de diferentes larguras, mas cheios de água à mesma altura, “sentem o mesmo peso” no fundo — uma das primeiras explicações científicas de que a pressão apenas varia com a altura.

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Manuscrito do Tratado da Estática (1645) de Hendrick Uwens (Henrique Boseo em Portugal) presente na Biblioteca Nacional.

Mas o Tratado da Estática também contempla muitas aplicações. A teoria da impulsão era usada para explicar as propriedades das naus e como recuperar navios naufragados. O movimento das águas em sifões explicava como levantar águas sobre colinas, ou como criar um sistema de refrigeração de casas. A mecânica e biomecânica explicavam como o homem consegue movimentar pesos grandes com facilidade. Pelas muitas figuras geométricas que usou, vê-se que Uwens queria ensinar aplicações mecânicas de forma rigorosa, ou seja, dirigia-se a estudantes de engenharia. Um dos dois manuscritos que se conhece do tratado está assinado pelo arquitecto real João Nunes Tinoco (ca. 1610-1689), que assistiu às aulas de Uwens, enquanto trabalhava no projecto do Mosteiro de S. Vicente de Fora.

O Tratado da Estática mostra que, ao contrário do que se pensava, a visão mecânica e matemática do mundo estava presente em aulas de matemática, na Lisboa de mil e seiscentos. Mais ainda, a qualidade de ambas as cópias manuscritas do tratado sugere que estavam feitas para circular entre engenheiros e professores de matemática em Portugal. Tendo em conta esta relevância histórica, é de admirar que ainda não tenha sido considerada a publicação de uma edição moderna do manuscrito. Ou, para dizer de outra maneira, é de admirar que as aulas de Uwens tenham passado completamente despercebidas até hoje, traduzindo bem a escassez do que ainda conhecemos sobre a nossa história científica.

Historiador da ciência da Universidade Johns Hopkins

Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação