A herança franquista: “Não queremos reconciliação com a ditadura fascista. Queremos justiça”
Pablo Mayoral e Benito Laiz foram presos nos anos de 1970, na última vaga de repressão do franquismo, que já decaía. Passados mais de 40 anos, defendem a exumação do ditador do Vale dos Caídos. Mas avisam: “Dizem que não se pode abrir novas feridas. Mas as feridas não se fecharam.”
No Verão de 1975, o regime franquista dava os últimos suspiros. Pablo Mayoral, que pertencia ao Partido Comunista de Espanha e tinha ajudado a desenvolver a Frente Revolucionária Antifascista e Patriota (FRAP, ilegal à época), foi detido e acusado de participar nos assassínios de um polícia e de um militar. Num primeiro momento, foi condenado à morte. A seguir, a pena foi alterada para 30 anos prisão. Cumpriu dois — Franco morreu, a transição começou e a Lei da Amnistia tirou-o da cadeia.
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No Verão de 1975, o regime franquista dava os últimos suspiros. Pablo Mayoral, que pertencia ao Partido Comunista de Espanha e tinha ajudado a desenvolver a Frente Revolucionária Antifascista e Patriota (FRAP, ilegal à época), foi detido e acusado de participar nos assassínios de um polícia e de um militar. Num primeiro momento, foi condenado à morte. A seguir, a pena foi alterada para 30 anos prisão. Cumpriu dois — Franco morreu, a transição começou e a Lei da Amnistia tirou-o da cadeia.
Passados mais de 40 anos sobre o fim da ditadura franquista, o Governo socialista espanhol quer olhar para o passado, apagar os símbolos que sobraram e procurar reconciliação. A exumação do corpo de Francisco Franco do mausoléu do Vale dos Caídos é o primeiro passo. “É uma questão de saúde democrática”, diz Mayoral ao PÚBLICO. Mas falta muito mais.
Perante a incapacidade, ou a falta de vontade, do Estado espanhol em levar responsáveis da ditadura ao banco dos réus, Mayoral arregaçou as mangas e fundou, em 2012, uma associação de ex-presos do franquismo chamada La Comuna Presxs de Franquismo. O objectivo é julgar os torturadores ainda vivos do regime.
A sede da La Comuna está ocupada e o encontro com o PÚBLICO foi marcado para um hotel no centro de Madrid. Pablo Mayoral chega acompanhado de Benito Laiz, colaborador da associação e também ele preso político na ditadura.
Tortura
Nos primeiros tempos que passou na prisão, Mayoral foi torturado. Mas, diz, teve melhor sorte do que outros companheiros. No conselho de guerra que o julgou, 11 pessoas foram condenadas à morte. “Das 11 condenações, cinco foram levadas a cabo — cinco companheiros. Três eram da FRAP, dois eram militantes da [organização basca] ETA. Fuzilaram três aqui em Madrid. E os outros executaram-nos em Bilbau e em Barcelona”, lembra Mayoral.
Cinco anos antes, em Dezembro de 1970, Benito Laiz, que militava na Organização Revolucionária de Trabalhadores (ORT, também ilegal), saía do escritório de uma advogada. Estava acusado de pertencer a uma organização criminosa e ainda fugiu dos que o foram deter, mas foi apanhado. Em Espanha, diz, estava em vigor uma “espécie de Estado de excepção, onde estavam suspensas as garantias dos cidadãos”.
“Levaram-me para a prisão nas Portas do Sol, em Madrid. Estive ali 26 dias. Sujeitaram-me a interrogatórios de diversos tipos” — não diz quais; nenhum dos dois quer dar muitos pormenores sobre o que sofreu. Aliás, Mayoral só em 2009 rompeu o silêncio sobre o tempo na prisão.
Prossegue Laiz: “Levaram-me depois para outra prisão, de Carabanchel, e acusaram-me de associação ilícita. Finalmente fui julgado, mas retiraram a acusação. Porque não conseguiram arrancar-me nada de concreto nos interrogatórios.”
Críticas à Lei de Amnistia
Ser preso político na ditadura de Franco não significava “apenas” a cadeia, os interrogatórios, as torturas. As consequências arrastaram-se para a vida lá fora, e não acabaram com a morte de Franco e a transição pacífica para a democracia.
A Lei da Amnistia, datada de 15 de Outubro de 1977, libertou os presos políticos, fez desaparecer as suas acusações, mas ilibou também os responsáveis do regime e os seus crimes, os julgamentos sumários, as execuções, a tortura, os delitos de lesa-humanidade que alguns tentaram levar à Justiça.
Depois de libertado, Laiz foi despedido da fábrica onde trabalhava como químico e director técnico. “A Lei da Amnistia deixou na rua os trabalhadores que foram despedidos por questões políticas”. A lei foi omissa em muitas matérias, como o emprego das vítimas. “Não havia possibilidade de readmissão”, diz Laiz.
Quando Mayoral e Laiz foram presos, estava-se no período do “tardo-franquismo”. O regime, em decadência — até devido à idade do “caudilho” —, lutava pela sobrevivência intensificando a repressão aos opositores.
Franco morreu em Novembro de 1975, aos 82 anos, e com ele caiu o regime repressivo e autoritário que inaugurou com a vitória sangrenta na Guerra Civil (1936-1939) contra a república, que depôs através de um golpe militar.
Seguiu-se a transição e a Lei da Amnistia, lei polémica e muito criticada por alguns sectores e que os antigos presos dizem ser um dos principais obstáculos ao que está por fazer: julgar os responsáveis pelos crimes do franquismo, porque as feridas continuam abertas.
Primeiro passo
O legado franquista voltou, ao fim de muitos anos, ao debate político em Espanha. O Governo do PSOE, liderado por Pedro Sánchez, vai mesmo avançar com a exumação dos restos mortais de Franco do Vale dos Caídos e procura uma forma de reconverter o monumento. O objectivo é iniciar um processo mais amplo de reconciliação, enfrentando a sombra da ditadura que ainda paira em Espanha.
“Tirar os restos de Franco, de um ditador, de um criminoso, de um sítio de especial importância como o Vale dos Caídos é, em primeiro lugar, necessário, e em segundo, importante. Porque é o único monumento a um ditador que há em todo o mundo [democrático]”, diz Mayoral. “É uma questão de saúde democrática.”
“Em sentido figurado, a laje que ali está está sobre o povo de Espanha”, acrescenta o presidente da associação La Comuna. “Não tirámos ainda esta laje, porque, por um lado, os franquistas continuam a mandar muito neste Estado e, por outro, há muito medo de dar qualquer passo contra a ditadura e os seus responsáveis.”
Laiz concorda que a “exumação é correcta”. Mas avisa que “é só uma pequena parte do assunto”. “É importante do ponto de vista da imagem. Em nenhum país democrático há um monumento deste tipo. Mas, claro, estes ganharam a guerra. A Alemanha, por exemplo, perdeu. Não podemos esquecer isto”, declara.
Ambos não têm dúvidas de que a exumação do “caudilho” seria uma “alegria”, até internacionalmente: “Para os resistentes franceses, italianos, para todo o mundo. Para todos os que lutaram contra a ditadura fascista e nazi.” No entanto, a actual procura de reconciliação não está isenta de críticas e de cepticismo.
“Fomos condenados por esta ditadura a muitos anos de prisão, sofremos torturas, e vemos que todos os responsáveis continuam por aí. E continuam a viver dos actos que cometeram”, acusa Mayoral, lançando para cima da mesa aquela que é a sua principal prioridade: a justiça.
“Não pedimos vingança”
Durante anos, a associação a que preside Pablo Mayoral tem tentado levar aos tribunais os responsáveis pelas torturas e pela repressão. Todos os processos foram travados. O argumento é sempre o mesmo: “Os crimes estão prescritos — coisa que não é verdade, porque os crimes contra a humanidade não prescrevem —, e a Lei da Amnistia exonera todos os responsáveis da ditadura, fossem quais fossem os seus crimes.”
“Nos tribunais foram apresentados mais de 20 processos que foram rejeitados”, diz Laiz, defendendo que este é o principal entrave a um eventual processo de reconciliação. “Essa seria a grande mudança — a alteração da Lei da Amnistia, que já foi proposta no Congresso, para que os tribunais não rejeitem sistematicamente as disputas judiciais.”
Neste confronto com o passado, já foi aprovada, em 2007 e por um governo socialista (de José Luís Zapatero), a Lei da Memória Histórica, que previa compensações para os presos políticos mas não mudou em nada a Lei da Amnistia. Os governos conservadores do Partido Popular congelaram a Lei de Zapatero, argumentando com razões orçamentais. Pedro Sánchez reabriu o tema, mas tem sido omisso sobre a possível criminalização dos responsáveis.
Já houve um caso de sucesso, ainda que relativo, porque o êxito durou pouco tempo. E foi preciso atravessar o Atlântico. Antonio González Pacheco, inspector da polícia política franquista e conhecido torturador a quem chamavam “Billy el Niño”, foi alvo de uma ordem internacional de busca e detenção (juntamente com mais quatro antigos membros das forças de segurança franquistas) emitida em Setembro de 2013 pela juíza argentina María Servini, depois de ter recebido denúncias de 13 crimes de tortura.
Nesse ano, a Audiência Nacional espanhola chegou a retirar o passaporte do antigo torturador e chamou-o para ser interrogado. Porém, em 2014, a extradição para a Argentina foi rejeitada com o argumento de que os crimes estavam “amplamente prescritos”.
Mayoral esteve envolvido em todo o processo e recorda os obstáculos: “O Governo (então do PP) opôs-se a tudo. Opôs-se até a que participássemos nesta disputa. Impediu que o julgamento se fizesse por videoconferência. Por isso tivemos de ir a Buenos Aires.”
Mayoral e Laiz insistem: o que é preciso é justiça. “Não queremos uma reconciliação com a ditadura fascista. Queremos a aplicação da justiça. Em função da reconciliação criou-se uma injustiça. Isto é evitar a responsabilidade dos criminosos”, atira Laiz.
“Creio que, politicamente, a condenação do franquismo e da ditadura está clara. E foi manifesta: hoje, muito poucos reclamam abertamente o franquismo. No entanto, o que estamos a exigir é que se leve isto para a via judicial. Não estamos a pedir vingança. Estamos a pedir justiça!”
“Dizem que não se pode abrir novas feridas. Mas as feridas não se fecharam. Este é o problema. A reconciliação é uma espécie de cobertura para não se fazer nada”, garante Laiz. “Sem justiça não pode haver reconciliação.”
Mayoral vai mais longe e engloba os governos espanhóis dos últimos anos nesta crítica: “Estiveram mais preocupados em proteger os franquistas de que com a justiça.”
Vale dos Caídos: “É apagá-lo”
O plano de Sánchez prevê a reconversão do Vale dos Caídos, monumento erguido por Franco, cuja construção durou de 1940 a 1959 e na qual participaram cerca de 20 mil presos republicanos, que reduziam a sua pena em troca do trabalho; muitos morreram devido às duras condições.
Num primeiro momento, o franquismo anunciou que o megalómano monumento seria uma homenagem “aos caídos na gloriosa cruzada”, os nacionalistas que na Guerra Civil derrotaram os republicanos. Pouco tempo depois da inauguração, começou a falar do monumento como uma recordação dos mortos de ambos os lados, depois de terem sido trasladados para ali os restos mortais de milhares de pessoas espalhadas em valas comuns por toda a Espanha. Estão enterrados no Vale dos Caídos quase 34 mil vítimas da Guerra Civil.
“A cruz, a basílica e tudo o que ali há é um monumento fascista. Foi desenhado em 1940, em plena ascensão das ditaduras fascistas. A guerra na Europa tinha começado há pouco tempo, a ditadura hitleriana mostrava as suas garras por toda a Europa, e Franco e o seu regime fizeram este monumento. Desenharam-no como um monumento à ‘cruzada’. Um monumento ao regime, à vitória na guerra”, explica Pablo Mayoral.
O problema que se coloca agora, mais do que a exumação de Franco — já aprovada pelos deputados —, é o futuro do monumento. O que fazer com o Vale dos Caídos é uma pergunta para a qual não existe resposta consensual.
Porém, Mayoral não tem dúvidas: “Este monumento não pode continuar de pé. Eu sou partidário de tirar os restos de todos os que continuam ali e apagá-lo.”
“Eu, depois de o apagar, não retiraria nem uma pedra do entulho e deixaria visível o trabalho de tantos republicanos escravos. Mas dizendo claramente que aqui havia um monumento fascista que foi construído por escravos do grupo republicano que lutaram para defender a legalidade. Isso seria reconstruir a História”, acrescenta Mayoral. “Reconciliação não é manter um monumento franquista, fascista”. Manter o Vale dos Caídos de pé, defende, “não é reconciliação, é ignorar mais uma vez todos os resistentes antifranquistas”.
A conversa termina e os antigos presos do franquismo suspiram, como se se libertassem de um peso. “Nós continuamos. Com 67 anos, talvez com menos energia, mas continuamos, porque é importante que se aplique a justiça e que isto nunca mais volte a ocorrer”, diz Mayoral antes de se despedir.