Uma nova crise não está ao virar da esquina
Economistas não acreditam numa nova crise como a vivida na última década com a Grande Recessão. Cenário diferente é o de um ajustamento do ciclo económico que pode levar a recessões nos EUA ou na europa.
Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:
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Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:
- No mundo pós-Lehman, nem tudo deixou de ser como dantes
- Teixeira dos Santos: “O que foi conseguido nas finanças públicas não se pode perder”
- Teixeira dos Santos: falência do Lehman Brothers foi o “gatilho” que fez tudo “cair completamente”
- João Moreira Rato: “Portugal ainda está em risco caso a economia mundial sofra um abrandamento substancial”
- Ricardo Cabral: “Não julgo que nova crise financeira internacional esteja ao virar da esquina”
- Rui Bárbara: “Há sempre algum economista a prever crises”
- Editorial: Lições inacabadas de uma década perdida
Os sinais de perigo existem. Há cada vez mais economistas a sinalizá-los. E há até quem já marque a data para uma nova crise financeira que levará a uma recessão global. Poderá estar o mundo novamente à beira de um buraco equivalente ao que se abriu após a falência do Lehman Brothers? Os economistas ouvidos pelo PÚBLICO afastam esse cenário, não escondem que há ameaças, mas lembram também que muito mudou na última década.
“Não estou certo nem julgo que [uma] nova crise financeira internacional esteja ao virar da esquina”, lembra o economista e professor universitário Ricardo Cabral, adiantando que, apesar de haver “vários” e “graves” factores de instabilidade, “os poderes dominantes têm capacidade para adiar o deflagrar da eventual crise financeira por vários anos”.
Uma opinião que é partilhada por Rui Bárbara do Banco Carregosa, que começa por lembrar que a todo o momento há economistas a prever que uma nova crise está à espreita. “O que devemos fazer é distinguir entre correcções — quer da economia quer dos mercados financeiros — , que são cíclicas, e eventos mais estruturais e mais raros”, até porque acontecimentos como a Grande Depressão de 1929 ou a Grande Recessão de 2008 “podem ocorrer”, mas “com intervalos de 70, 80 anos”.
Diferente resposta tem a pergunta sobre se vamos ter uma recessão na Europa ou nos Estados Unidos (EUA). Aí, a resposta é “sim”, diz Rui Bárbara, “mais cedo ou mais tarde ela virá. E quanto mais tempo nos distanciarmos da última crise, mais perto estaremos de uma nova”, até porque, adianta, a “economia move-se por ciclos e eles não desapareceram”.
E o que os números mostram é que tanto os EUA como a zona euro apresentam actualmente longos períodos de crescimento. Se as mais recentes previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) se confirmarem, em 2023 os EUA registarão 14 anos consecutivos de crescimento e a zona euro registará dez.
Riscos e soluções
O que leva então economistas como Jean-Claude Trichet, que em 2008 liderava o Banco Central Europeu (BCE) e que meses antes da queda do Lehman subiu as taxas de juro, a dizer que a situação financeira está hoje tão perigosa como a vivida há dez anos? Ou o que leva Nouriel Roubini, um dos economistas conhecidos por terem previsto a crise de 2008, a perspectivar uma nova crise financeira e uma grande recessão já para 2020?
Um dos motivos apontados tem que ver com os efeitos da retirada dos estímulos dados pelos bancos centrais como forma de combater a Grande Recessão e o movimento de subida de taxas de juro já iniciada por alguns destes bancos centrais, em particular a Reserva Federal norte-americana. O efeito destas medidas, aliado à política expansionista em curso nos EUA, que obriga a maiores necessidades de financiamento, está a causar danos, em particular nos países emergentes que se encontram endividados e que têm grande parte da dívida em dólares.
É com base neste cenário que o economista João Moreira Rato diz que “a próxima correcção nos mercados de dívida já está a começar e a ter muito impacto em países emergentes”, exemplificando com o caso da Turquia e da Argentina, que, afirma, “já estão a passar por uma situação delicada” ao verem as suas moedas a sofrer fortes desvalorizações face ao dólar. Isto acontece, explica João Moreira Rato, porque “os fundos que detêm as dívidas destes países tentam desfazer-se destas posições, mas não encontram comprador”. E tentam desfazer-se porque, entre outros factores, encontram melhor rendimento nos EUA. “Se um investidor pode investir a 2,6% a dois anos em obrigações do Tesouro Americano”, para manter os investimentos nos mercados emergentes “tem de ser mais compensado”.
Todos estes movimentos criam uma espécie de círculo vicioso em que o dólar valoriza, o que faz aumentar a dívida dos países emergentes, porque grande parte é denominada na moeda norte-americana, o que aumenta as suas dificuldades financeiras e afasta ainda mais os investidores para aplicações nos EUA.
Mas há mais riscos. Desde logo a política comercial da Administração Trump e a evolução dos principais índices bolsistas nos EUA. “A evolução dos índices das bolsas dos países desenvolvidos, em particular dos EUA, pode levar os analistas a considerar que existe o risco de um colapso financeiro”, lembra Ricardo Cabral, citando o Bank of America Merrill Lynch, para lembrar que os índices nos EUA registam “o período de crescimento regular (bull market) mais longo da história”. Olhando para outro indicador, o rácio CAPE (Cyclically Adjusted Price-to-Earnings), criado por Robert Shiller — um economista norte-americano que recebeu o Prémio Nobel pela forma como contribuiu para avaliar melhor a valorização dos activos nos mercados — e que compara o valor das acções com os resultados obtidos pelas empresas ao longo dos dez anos anteriores, percebe-se ainda mais a preocupação existente. O CAPE está a um nível que é o segundo mais alto desde 1881, o ano a partir do qual há dados disponíveis. O momento na história em que o CAPE registou um valor mais elevado (44,2 pontos) foi na véspera do rebentamento da bolha “.com” em 2000. Actualmente, este índice está acima do valor atingido nas vésperas do colapso da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Isto não significa, claro, que tenhamos agora um colapso bolsista semelhante.
Depois há ainda muitos outros sinais de risco assinalados pelos economistas, como a “euforia” que se sente com outros activos financeiros, o elevado nível da dívida pública e privada e dos défices externos em muitas economias, alguns sinais de alavancagem financeira excessiva, países como a Itália onde o sector financeiro continua muito exposto à divida soberana, ou a China, onde os bancos parecem ter aumentado muito a exposição à dívida pública e privada e onde existem níveis de endividamento excessivos.
Mas se existem riscos também é verdade que a Grande Recessão obrigou à criação de medidas de defesa e de comportamentos de menos risco. Rui Bárbara salienta, por exemplo, que “os bancos dos EUA estão mais bem preparados em termos de capitalização do que estavam antes de 2008. Os bancos europeus, embora menos do que os norte-americanos, também estão melhor do que estavam em 2012 e 2013”, uma opinião partilhada por João Moreira Rato, que lembra que hoje “os bancos estão muito menos alavancados e mais seguros” e que as famílias “também têm reduzido o endividamento”. Depois, além de os rácios de capital terem subido, há a regulação e a supervisão bancária, que se tornaram “muito mais intrusivas e exigentes”, conclui Ricardo Cabral.