No mundo pós-Lehman, nem tudo deixou de ser como dantes

Depois de 2008, o impulso de maior regulação foi evidente no sistema financeiro e a ciência económica fez um esforço para se regenerar. Mas vários dos factores que foram considerados como causa da crise continuam, passados dez anos, inalterados.

Foto

Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:

“Nada irá ficar como dantes”, foi uma das frases mais ouvidas quando, depois do choque da falência do banco de investimento norte-americano a 15 de Setembro de 2008, o sistema financeiro mundial estava em queda livre, lançava as economias para uma recessão e arruinava as finanças públicas de vários países.

Com o desemprego a disparar e a pressão da opinião pública a subir, a palavra mudança passou a estar na boca dos políticos e entre os principais alvos estavam a regulação do sistema financeiro, o papel das agências de rating, os desequilíbrios macroeconómicos globais e o pensamento económico dominante. Nos últimos dez anos, em resposta ao desastre económico que se seguiu à queda do Lehman, muitas medidas foram tomadas e comportamentos alterados, mas no meio das mudanças é possível encontrar semelhanças, algumas delas fundamentais, entre os cenários antes e depois do 15 de Setembro de 2008.

Regulação financeira

Os Governos e as entidades que era suposto regularem e fiscalizarem o sistema financeiro foram apanhados completamente desprevenidos e, depois de não terem conseguido evitar que se criassem as condições para o crash, mostraram ainda grandes dificuldades para evitar os efeitos de contágio. Depois da falência do Lehman Brothers, o resto do sistema financeiro apenas não se desmoronou completamente porque os Estados injectaram grandes quantidades de dinheiro, à custa do agravamento das dívidas públicas.

Por isso, não é surpreendente que nos dias, meses e anos a seguir à crise fosse difícil encontrar alguém – fossem políticos, economistas ou mesmo banqueiros – a recusar a ideia de que era preciso reforçar a regulação sobre os bancos e criar os mecanismos para que uma falência de um banco não significasse necessariamente um colapso do sistema financeiro que desencadeasse uma recessão.

E de facto, nos anos seguintes, assistiu-se a um movimento claro, tanto nos EUA como na Europa, na direcção de uma maior regulação dos bancos. Nos EUA, onde a crise teve o seu início por causa das práticas extremamente arriscadas de concessão de empréstimos, alteraram-se as regras no crédito hipotecário e retirou-se, através da legislação Dodd-Frank aprovada em Julho de 2010, alguma da enorme liberdade de acção de que beneficiavam os bancos. Particularmente importante para evitar uma repetição da crise foi a introdução da regra Volcker que limita a possibilidade de os bancos efectuarem investimentos arriscados com os seus próprios recursos e de serem donos de outras entidades financeiras com práticas de risco elevado, como fundos de investimento.

A nível global, o acordo de Basileia III em 2010 trouxe maiores exigências ao nível dos rácios de capital, o que forçou os accionistas dos bancos a injectarem mais dinheiro sempre que as instituições de que eram donos não passavam os testes de stress a que eram sujeitas pelas entidades reguladoras norte-americanas e europeias. Na Europa, o projecto de união bancária, embora longe de estar completo, criou ainda regras precisas para a resolução dos bancos, que no entanto estão ainda por testar.

Esta mudança de regras, combinada com a própria pressão dos mercados, forçou efectivamente os bancos a mudar. Os níveis de capital são agora bastante mais altos, o que em teoria torna os bancos mais resistentes às crises. O rácio de capital Core tier-one subiu de 8,8% para 14,7% na Europa e de 9,8% para 12,9% nos EUA. A dependência do financiamento de curto prazo – que quando o Lehamn Brothers faliu deixou de estar disponível para todos – diminuiu grandemente (de 32% para 14% nos EUA). E os bancos europeus, que em 2018 estavam totalmente expostos aos EUA, têm agora ligações bastante mais moderadas e, espera-se, mais seguras. Todos os bancos se queixam de uma supervisão mais intrusiva, o que é um sinal de que são agora obrigados a dar muito mais informação aos reguladores do que eram no passado.

Por tudo isto, Nuno Teles, professor na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia e um dos autores do livro “A Financeirização do Capitalismo em Portugal", reconhece que “as mudanças foram muitas” e que as medidas tomadas “permitiram alguns progressos”. No entanto, está entre aqueles que não acredita que as mudanças tenham sido as suficientes para eliminar os riscos de uma nova crise. “O modelo de negócio financeiro pré-crise continua o mesmo, com as mesmas disfunções que permitem uma miríade de produtos e mercados financeiros opacos, uma economia internacional assente no endividamento, uma afectação enviesada de recursos para o sector imobiliário e para a bolsa e uma estrutura monopolista bancária”, afirma.

De facto, apesar de em 2008 o facto de haver “bancos demasiado grandes para falir” ter sido apontado como uma das causas da crise, esta foi uma questão em que nada se alterou: em 2007, os cinco maiores bancos de investimento tinham 32,6% das receitas do sector e este número mantém-se inalterado, de acordo com a The Economist. De igual modo, o chamado sistema bancário sombra, que inclui fundos de investimento de alto risco, continua a ter um peso muito importante no mercado, com níveis de transparência ainda bastante baixos.

Agora, passados dez anos da falência do Lehman Brothers, é muito evidente que um novo impulso regulador é bastante improvável. Pelo contrário, a tendência parece ser a inversa. Os bancos têm revelado dificuldades em regressar aos níveis de rentabilidade do passado e apontam o custo da maior regulação como um dos culpados, pedindo aos governos que eliminem aquilo que dizem ser um excesso de regulação. Nos EUA, esses apelos foram ouvidos pela presidência Trump, tendo sido aprovada uma suavização da legislação Dodd-Frank que tinha entrado em vigor no pós-crise. “O novo ímpeto desregulador norte-americano que elimina algumas da provisões do Dodd-Frank, aliado à extraordinária redução dos impostos sobre capital, permite hoje uma nova euforia financeira, cujo fim terá certamente impactos em toda a economia. Resta saber qual a parte do sistema financeiro que irá ceder primeiro”, afirma Nuno Teles.

Agências de rating

Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, conhecidas nos mercados financeiros como “as três grandes”, dominam o negócio das atribuições de ratings e na crise de há dez anos desempenharam um papel fulcral nos tristes acontecimentos que abalaram então o mundo. 

Tinham sido elas que, quando a euforia imperava no sistema financeiro e os bancos decidiram vender em pacote os créditos hipotecários de alto risco concedido no mercado subprime norte-americano, atribuíram a esses títulos classificações muito positivas. Isto é, garantiram com os seus ratings que investir nesses créditos não era arriscado, algo que, logo a partir de 2007 se começou a revelar completamente falso.

Esta falha clamorosa das agências de rating tornou-se ainda mais grave quando se as pessoas começaram a ter noção que, neste negócio, são os emissores dos títulos que pagam às agências para estas atribuam os ratings, algo que ajuda a explicar a agora famosa frase encontrada num email de um analista da Standard & Poor’s antes da crise: “Nós atribuímos ratings a todos os negócios. Podem ser estruturados por vacas, que nós damos um rating na mesma”.

As agências de rating ficaram assim, a partir de 2008, no centro das críticas, e a expectativa é que muita coisa mudasse neste negócio. Como nos bancos, a regulação foi reforçada: as agências são agora forçadas, tanto nos EUA como na Europa, a fornecerem muito mais informação aos reguladores e ao mercado sobre a forma como calculam os ratings, que critérios usam e quais os factores de ordem mais subjectiva que entram na equação.

Na Europa, onde o papel das agências de rating foi novamente posto em causa quando estas baixaram a classificação atribuída à dívida soberana de vários países, incluindo Portugal, contribuindo para o pânico que se gerou nos mercados, criaram-se regras mais apertadas, que incluem um calendário pré-determinado para a atribuição do ratings.

Serão estas regras suficientes? Passados dez anos, as agências de rating saíram em larga medida dos holofotes, quase voltando ao anonimato de que gozavam antes da crise. Mas a verdade é que, para além das maiores obrigações de informação, o seu negócio continua a funcionar da mesma forma - mantém o modelo base em que quem paga pelos ratings são as empresas que estão a ser avaliadas - e a sua importância nas operações financeira é a mesma, como se pôde testemunhar com o efeito positivo nas taxas de juro de que beneficiou Portugal quando os seus ratings foram retirados do “lixo”.

Uma forma de retirar poder às agências de rating era, no caso da dívida soberana, os bancos centrais deixarem de tomar decisões com base nas classificações que estas atribuem. Mas aqui, também nada mudou e o Banco Central Europeu continua a só aceitar títulos de um país como garantia se estes tiverem um rating acima de “lixo”.

Por fim, “as três grandes” continuam a ser “as três grandes”, sendo responsáveis por 96,4% do negócio a nível mundial.

Desequilíbrios macroeconómicos

De um lado, a China, com os seus excedentes comerciais gigantescos e o seu elevado nível de poupança. Do outro lado os EUA, com um enorme défice externo e uma inesgotável vontade de consumir. Uma coisa juntou-se à outra e conduziu a que, com a China a investir as suas poupanças, os Estados Unidos pudessem, a taxas baixas, endividar-se cada vez mais, gerando os desequilíbrios que conduziram à crise.

Esta é, em termos de política macroeconómica, uma das teorias mais populares sobre as causas da crise. E por esse motivo, depois de 2008, os decisores políticos de todo o planeta se esforçavam, em reuniões do G8 ou do então criado G20, para chegar a acordos que diminuíssem os desequilíbrios macroeconómicos mundiais.

Nos últimos dez anos, o cenário mudou bastante, mas novos desequilíbrios persistem, num cenário político que é agora bem menos propício ao entendimento entre os vários países do que era nos momentos a seguir à crise.

Ricardo Reis, professor da London School of Economics, não concorda que o desequilíbrio EUA-China tenha tido a influência que muitos economistas dizem, assinalando que, “foi na crise europeia de 2010-12 que os tais desequilíbrios globais foram muito importantes: os grandes excedentes foram nalgumas regiões do centro da Europa e os enormes défices foram noutros países da periferia, com Portugal incluído no segundo grupo”. Neste caso, a situação claramente mudou, e agora é a zona euro como uma todo que tem um saldo muito positivo, com pouco a conseguir ser feito para o evitar.

Francesco Franco, professor na Nova School of Business and Economics, explica que agora já não se observa um excedente externo elevado da China, tendo o gigante asiático caminhado para uma situação de equilíbrio. Em contrapartida, a zona euro passou a desempenhar esse papel, ao passo que os EUA mantêm défices elevados.

“Esse défice reflecte sobretudo o facto de o mundo precisar de dólares e era importante que a zona euro passasse também a ser visto como um activo seguro”, afirma. O economista lamenta que neste cenário, se assista a “um recuo no multilateralismo em várias áreas”, de que é exemplo a política proteccionista de Donald Trump, “o que não cria perspectivas para encontrar soluções conjuntas”.

Pensamento económico

Oito dias depois da falência do Lehman Brothers, Alan Greenspan, o ex-presidente da Reserva Federal que acabou por ser visto como o símbolo da ideologia económica que imperou durante a década anterior, fez o seu mea culpa perante o Congresso dos EUA: “Sim, encontrei uma falha [na ideologia]. Não sei quão significativa ou permanente será. Mas tenho estado bastante preocupado com isso”, disse.

Para além dos bancos, dos bancos centrais e das agências de rating, também os economistas foram alvo de fortes críticas, não só por terem falhado na previsão da crise, como também por terem oferecido a base cientifica para baixos níveis de regulação, elogio da tomada do risco e apologia da procura incessante do lucro. Em particular, a utilização de modelos teóricos em que o comportamento dos agentes económicos é sempre racional e em que os equilíbrios acabam sempre por ser encontrados revelou-se bem mais falível do que era previsto.

Por isso, em 2009, os apelos a uma mudança na ciência económica subiram de tom, pedindo-se que ideias mais heterodoxas fossem ouvidas pelos decisores políticos e fossem ensinadas nas faculdades às futuras gerações de economistas.

Ricardo Paes Mamede, professor no ISCTE, assinala que “os sinais de mal-estar no seio da ciência económica era já visível na década anterior à grande crise financeira”, e que “a grande crise financeira veio essencialmente validar muitas das críticas que já vinham sendo dirigidas à ciência económica convencional”. Aquilo que aconteceu, explica, é que “o ambiente académico tornou-se menos hostil aos economistas heterodoxos e o ensino um pouco mais sensível ao mundo real”. Francesco Franco também vê mudanças. “Esta dificuldade dos modelos para responder à crise levou a que durante os anos seguintes se assistisse a um impulso reforçando as análises multidisciplinares, e passar a considerar nos modelos factores mais heterogéneos”, isto é, considerar comportamentos diferentes dos agentes de acordo com diversas características, como o seu nível de rendimento ou a idade.

Isto será suficiente? Francesco Franco reconhece que “a nova abordagem na construção de modelos não vai chegar à verdade, mas o esforço feito foi bom”. Ricardo Paes Mamede diz que “hoje os economistas mainstream acreditam menos naquilo que fazem do que acreditavam há dez anos”, mas que “isso não chega para que a ciência económica dominante seja algo diferente do que é”. “Na verdade, não seria de esperar outra coisa. A Economia académica é há algumas décadas uma indústria como qualquer outra - com as suas estruturas e lógicas de reprodução de poder, as suas crenças e valores e os seus sistemas de incentivos. E as principais instituições empregadoras de quem tem formação avançada em economia são completamente ocupadas por pessoas que foram formadas no paradigma dominante”.