Falência do Lehman Brothers foi o “gatilho” que fez tudo “cair completamente”, diz Teixeira dos Santos

“Sabíamos que havia bancos expostos ao subprime, mas, em boa verdade, não havia transparência que permitisse saber até que ponto este ou aquele banco estava a ser afectado”, admite Teixeira dos Santos.

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"O sistema não estava preparado para ter e divulgar informação específica sobre este tipo de activos", recorda Teixeira dos Santos Rui Gaudêncio

Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:

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Dossier sobre os dez anos da queda do Lehman Brothers:

Fernando Teixeira dos Santos era o ministro das Finanças português quando há quase dez anos faliu o Lehman Brothers. Depois da crise do subprime, um ano antes, tudo parecia controlado na Europa, reconhece o agora presidente do banco EuroBic, mas depois veio a queda do Lehman e tudo mudou.

A surpresa sobre a real dimensão dos problemas na banca provocados pelos créditos hipotecários de alto risco com origem nos Estados Unidos da América (EUA) foi total. Um surpresa que era transversal a todos os ministro das Finanças da União Europeia e também do Banco Central Europeu (BCE), admite Teixeira dos Santos. “O BCE, se soubesse, nunca teria tomado uma medida em contrapé como tomou em Julho de 2008”, lembra o então ministro, referindo-se à subida das taxas de juro protagonizada pelo então líder do BCE, Jean-Claude Trichet.

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Como viveu a falência do Lehman Brothers?
No Verão anterior tínhamos tido a crise do subprime [com origem nos EUA] que causou uma grande perturbação nos mercados financeiros. Quando em Agosto de 2007 o BNP Paribas suspendeu o resgate de títulos que estavam associados ao crédito imobiliário americano, foi o sinal de alerta de que havia um problema. Os mercados contraíram-se e vivemos um período muito forte de falta de liquidez que levou o BCE a injectar mais de 90 mil milhões de euros no sistema. 

Já estavam em estado de alerta...
Em meados de 2008 ainda vivíamos um pouco a onda de choque da crise do subprime com os bancos a reajustarem-se a uma nova situação em que era mais difícil o acesso à liquidez internacional e ao seu refinanciamento, e isso traduzia-se, obviamente, em maiores dificuldades para os bancos, em particular na concessão de crédito.

O sentimento era que havia um problema mas que estava a ser resolvido?
Exacto. Havia um problema que, de alguma forma, gradualmente, ia sendo resolvido, embora se antecipasse que essa situação, pelas dificuldades existentes no financiamento da economia, iria originar alguma retracção da actividade económica.

Mas o grande problema que vivíamos no Verão de 2008 era um problema de inflação. Foi nessa altura que o preço do petróleo disparou para 150 dólares o barril e o preço de uma série de commodities subiu de forma significativa. A taxa de inflação chegou a atingir os 3,1% em Portugal, em termos homólogos. Isto fez com que o BCE, em Julho de 2008, tomasse a decisão de subir as taxas de referência [para 4,25%].

O ambiente era de que a crise do subprime se ia resolver e a conjuntura era de desaceleração económica e subida da inflação...
É um pouco nesse quadro que surge a falência do Lehman Brothers, que nos revela que a situação do sistema financeiro e dos bancos, em particular, está longe de estar ultrapassada e que as suas debilidades ou fragilidades seriam bem maiores do que aquelas que se poderiam imaginar. O mercado interbancário praticamente secou, havia grande desconfiança entre as instituições, sabíamos que havia bancos que estavam expostos aos activos tóxicos do subprime, mas, em boa verdade, não havia transparência que permitisse saber até que ponto este ou aquele banco estava a ser afectado pela exposição a esse tipo de activos.

Era um problema de supervisão?
Era mais um problema de transparência, de reporte. O sistema não estava preparado para ter e divulgar informação específica sobre este tipo de activos. As contas que eram publicadas não tinham um grau de detalhe que permitisse ver quais os activos problemáticos, e gerou-se um ambiente de muita desconfiança nas relações entre os bancos sem se conseguir avaliar o risco. A falência do Lehman Brothers foi como um gatilho. O nível de incerteza adensou-se e aquilo que parecia ser uma situação que estava estabilizada e que gradualmente se poderia ir recuperando, de um momento para o outro, caiu completamente. Só para recordar, a terminologia que na altura se usava a nível europeu era o risco de meltdown do sistema financeira. Era um risco de colapso.

A não antecipação da gravidade da situação, que ficou evidente com a queda do Lehman Brothers, a surpresa, era geral entre os líderes europeus, o BCE...
Era partilhado de uma forma geral. Era um sentimento que se vivia, pelo menos, entre os meus colegas.

Mas mesmo o BCE, que tinha relações com a Reserva Federal norte-americana (Fed)?
O BCE, se soubesse, nunca teria tomado uma medida em contrapé como tomou em Julho de 2008. A subida das taxas de juro neste ambiente e com o que veio a passar-se acabou, ela própria, por contribuir para o agravamento da conjuntura económica.

E que contribui para a recessão de 2009...
A partir de meados de 2008, se virmos as contas trimestrais, sentimos a desaceleração de crescimento a nível europeu e que nos vai levar ao ponto mais baixo da crise, que ocorre, mais ou menos, em meados de 2009, o ano da grande recessão.

E a nível interno, quando é que há um ponto de viragem e quando é que se percebe que se tem de mudar de rumo?
Isso acontece claramente em finais de Setembro, inícios de Outubro. Houve um Eurogrupo, um Ecofin e depois uma cimeira de chefes de Estado, e foi aí que se tomaram decisões que iam no sentido, em primeiro lugar, de adoptar medidas que evitassem o meltdown do sistema financeiro e permitissem introduzir factores que preservassem a confiança dos agentes económicos no sistema financeiro.

Para impedir uma corrida aos bancos?
Tínhamos um problema de medo e podia haver uma corrida ao sistema financeiro que aceleraria ainda mais a crise. Havia a necessidade de tomar medidas no sentido de contribuir para manter a solidez do sistema, de lhe dar condições para ter liquidez e, por essa via, dar um sinal de que não há razões para não ter confiança no sistema financeiro. E é também a partir dessa altura que se começa a falar na necessidade de políticas anticíclicas, anti-recessivas. Foi Durão Barroso, na altura presidente da Comissão Europeia, que avançou com essa iniciativa.

Mas que medidas foram adoptadas em concreto?
Nesse Conselho Europeu decidiu-se, em primeiro lugar, que os Estados-membros deveriam conceder garantias aos bancos nas suas operações de refinanciamento e que os Estados deveriam entrar no capital dos bancos que necessitassem de ser recapitalizados. Foi nessa altura que fiz uma declaração política em que afirmei que os depósitos dos portugueses estão garantidos para evitar situações...

Havia sinais...
Havia muita intranquilidade. Por essa altura decorria o caso do Banco Português de Negócios (BPN), e a falência do Lehman Brothers alavancou a relevância do caso BPN. O BPN, pela sua dimensão, não era um banco que tivesse um impacto sistémico, mas respirava-se um ambiente de gasolina no ar e qualquer fagulha era perigosa.

Mas esse ambiente que levou a que os Estados quisessem salvar os bancos a todo o custo foi excessivo, tendo em conta o que sabemos hoje, o que foi a crise da dívida soberana na Europa? Foi-se longe demais?
Tenho dificuldade em dizer que se foi longe demais se olharmos, por exemplo, para o que se passou nos EUA. Os EUA deixaram falir o Lehman e outras instituições, mas rapidamente perceberam que tinham de assegurar a estabilidade no sistema financeiro. O programa TARP (Troubled Asset Relief Program) foi um programa de intervenção. É isso que diferencia a política americana face à europeia, intervenção forte e imediata das autoridades no resgate do sistema financeiro. Na Europa demorámos muito tempo. Não interviemos tão rápida e frontalmente. Os americanos foram logo a jogo para limpar e estabilizar o sistema financeiro, compraram os activos problemáticos, limparam os balanços dos bancos, é evidente que o défice americano disparou e a dívida também, mas asseguraram a estabilidade do sistema financeiro e, nesse sentido, retiraram, ou mitigaram, muito o risco que os mercados poderiam perceber de a situação dos bancos poder vir a contaminar ou pôr em risco as finanças públicas americanas no futuro.

E não foi o que aconteceu na Europa...
Na área do euro não tivemos o chamado “lender of last resort” a funcionar, o prestamista de última instância, nem tivemos um Tesouro, como os americanos tiveram, a servir de backstop. Os bancos [na Europa] tiveram de manter os seus activos tóxicos e outros que, com a deterioração da conjuntura, não eram tóxicos mas que acabaram por ser problemáticos.

Não resolvemos a situação do sistema financeiro e fomos penalizados pelos mercados por ter défices e dívida...
Sempre me interroguei porque é que os mercados ficaram tão preocupados e sensíveis aos défices e dívida elevados na saída da crise em 2009, quando nunca se preocuparam com os défices, por exemplo, da Bélgica, Grécia ou Itália, desde a criação da área do euro.

E encontra alguma explicação?
A única que vejo é que os mercados, ao constatarem o agravamento do défice e da dívida na área do euro, em particular nalguns países, e apesar de os países terem assumido compromissos de correcção da situação, tiveram sempre a percepção de que o sistema bancário estava fragilizado, e muito embora os Estados dissessem que iriam diminuir o défice, tinham uma espada de Dâmocles em cima da cabeça. Ou seja, o problema nos bancos iria obrigar os Estados a intervir e estes não iriam conseguir corrigir as finanças públicas enquanto não corrigissem a situação dos bancos.