Katia Guerreiro e José Mário Branco fizeram um disco: esquerda, direita... fado!

Katia Guerreiro e José Mário Branco fizeram um disco juntos, num encontro improvável entre uma voz (a dela) e um método (o dele). Sempre, o resultado da experiência, chega hoje às lojas. E se musicalmente tira bom partido deste “encontro mágico”, como ela lhe chama, selou no fado uma amizade.

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Jorge Simão

Até ao fim, sempre. Não é uma frase, é a sequência dos títulos dos mais recentes discos de Katia Guerreiro. Mas sintetiza a tenacidade que tem marcado os passos desta fadista. Até Ao Fim, lançado em 2014, foi produzido por Tiago Bettencourt (ex-Toranja). E Sempre, que chega às lojas esta sexta-feira, tem produção de José Mário Branco. Uma colaboração improvável, até por razões ideológicas: ele irredutivelmente de esquerda, ela publicamente mais identificada com a direita. Mas resultou, e Katia explica como:

“Desde o Até Ao Fim que estava com vontade de convidar o José Mário Branco para produzir um disco meu. Mas tinha algum receio de levar uma nega, por variadíssimas razões, nomeadamente ideológicas. Tinha a ideia de ele ser um homem mais fechado nestas coisas e poder ter alguns preconceitos em relação a mim.” Chegou, antes disso, a pedir-lhe um tema, que ele lhe enviou. “Só que a coisa demorou, começámos a trabalhar no Até Ao Fim, o tema já não veio a tempo e acabei por não o utilizar no disco.” O próprio Tiago Bettencourt já lhe tinha sugerido tal convite, quando ela o abordou pela primeira vez. “Na altura em que eu fiz o convite ao Tiago, ele disse-me: ‘estás maluca, eu nunca fiz disso, só produzi os meus discos; porque é que não convidas o José Mário Branco?’ E eu respondi: ‘Porque ele nunca vai aceitar.’ ‘Estás a ser preconceituosa.’ ‘Não sou eu que sou preconceituosa, acho é que ele nunca vai aceitar trabalhar comigo.’ Insisti com o Tiago e ele produziu o disco; mas fiquei sempre com aquele bichinho, a vontade de trabalhar com o José Mário, pela enorme admiração que tenho por ele.” E em 2015, quando ela começou a pensar num novo disco, arriscou mesmo convidá-lo, mas sem sucesso. “Em 2015 comecei a pegar nas minhas coisas, nas minhas pesquisas, e fiz um primeiro convite. Que não correu bem, porque não nos entendemos.”

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Um primeiro fascínio

Mas quis o acaso que em 2016 ambos se encontrassem na rodagem de um filme que continua por estrear, Alfama em Si, de Diogo Varela Silva (neto de Celeste Rodrigues). Mais: no filme, Katia foi dirigida por José Mário Branco. “Quando ele começa a falar comigo e a dirigir-me, tínhamos dois temas para trabalhar para o filme, fiquei fascinada com a forma como ele me pedia o que pretendia dos temas. Sem me dizer ‘canta assim ou canta assado’, contou-me uma história e pediu-me para eu entrar num determinado ambiente emocional. Que foi o que aconteceu, gravei à primeira. E era isso mesmo que eu queria: que alguém me ajudasse a recuperar a minha sensibilidade e simplicidade a cantar, sem entrar naquela euforia das interpretações em palco que nos levam a um certo histrionismo. Eu queria voltar para o estúdio outra vez, queria voltar a recolher-me.”

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Katia tinha acabado de ser mãe pela segunda vez (depois de Mafalda, nascida em 2012, chegou João Mário em 2016) e estava ainda a amamentar quando participou no filme. E José Mário Branco, várias vezes avô, encantou-se com o bebé. Por isso, quando Katia recomeçou a pensar no novo disco e ganhou coragem para lhe telefonar outra vez (“Zé Mário, fala Katia Guerreiro”), ouviu do outro lado: “Olá menina. Como é que tu estás? E o João Mário? Então a que se deve este telefonema?” E ela: ‘Não vale a pena estar com rodeios; quero convidá-lo para produzir o meu novo disco.’ Ele faz um silêncio sepulcral e diz: ‘Ó Katia, mas eu sou insuportável!’ E eu respondi: ‘Da sua fama não tenho medo nenhum. A verdade é que trabalhámos juntos [no filme] e a forma como o Zé Mário fala comigo é o que eu procuro para fazer este disco.’ Tivemos uma conversa de uma hora, falámos sobre muita coisa, a forma como pensamos e sentimos o fado, as coisas que estão bem e as que estão mal, o caminho que o fado está a levar, e a nossa vontade de respeitar a tradição, fazendo dentro da tradição coisas novas e bonitas, na abordagem, nos arranjos, na direcção musical, interpretativa e emocional. E estávamos completamente de acordo. O que foi muito surpreendente. Para ele, sobretudo.”

“Cantar é sonho vivido”

O que combinaram? Não dizer que ele estava a produzir um disco dela, mas que iam experimentar fazer um disco juntos. Se não resultasse, ia cada um para seu lado. E assim foi: horas de conversa com José Mário Branco e Manuela de Freitas, troca de materiais (Katia levou os seus apontamentos e trouxe de casa deles um caderno com poemas sem autorias identificadas, “um exercício extraordinário”) e depois trabalhar nas escolhas. “O encantamento mútuo que se desenvolveu não foi imediato. Houve muitas conversas, muitas horas de trabalho, muitas discussões, se é este poema ou não é este poema, as escolhas do fado tradicional (e aí o Pedro de Castro esteve sempre presente, ajudou-nos imenso). O encontro teve este sabor de ansiedade, porque não sabíamos como é que a coisa ia correr, mas a determinada altura tudo fluiu. Mas sem estabelecer prazos. Antes de irmos para estúdio, tínhamos 33 temas. Reduzimos para 23. E gravámos 21.”

Nas gravações participaram cinco músicos: Pedro de Castro e Luís Guerreiro, ambos na guitarra portuguesa; João Mário Veiga e André Ramos, na viola de fado; e Francisco Gaspar no baixo acústico. Há temas onde entram os cinco, outros onde entram quatro ou só três. Ou nenhum, como é o caso do prólogo que abre o disco, A minha vida é, escrito por Katia Guerreiro e cantado a capella. No final do disco este tema repete-se, como epílogo, mas já com todos os músicos: “A minha vida é/ Dar-me ao fado mais sentido/ Cantar é sonho vivido/ E encontrar, cantando, mais calor// E enquanto canto eu/ perco o medo, abro a vidraça/ Mostro quem sou a quem passa/ E dou-me inteira ao amor.” Um tema com mais de dez anos, que “estava lá guardado” e que José Mário, ao lê-lo, achou que devia abrir e fechar o disco, criando e concluindo um ambiente para a audição.

A voz de Katia, tal como já sucedia no disco anterior, mostra-se mais acertada e sóbria na abordagem das palavras e no empenho emocional posto no canto. Disco anterior que José Mário não conhecia mas, diz ela, elogiou depois de ouvi-lo. “Enviei-lho. E quando cheguei ao primeiro encontro, ele disse-me: ‘Fiquei muito surpreendido; temas muito bonitos, muito bem tocado, muito bem cantado.’ Fez-me um grande elogio ao Até Ao Fim, e esse elogio foi o maior trunfo que eu tive com este disco.” Habituado a trabalhar com o trio básico do fado tradicional (guitarra portuguesa, viola de fado e viola baixo), José Mário Branco aceitou, por insistência de Katia, experimentar duas guitarras e duas violas, em conjunto ou alternadas. “E ele começou a entusiasmar-se com esta dinâmica. No Fado Pessoa estão as duas violas a tocar, onde o João Veiga faz o acompanhamento e a batida (o Zé Mário chama-lhe o baterista da viola) e onde ele pediu ao André Ramos para fazer um contratempo. E aquilo dá uma riqueza extraordinária ao arranjo.”

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“Mas nunca vire à direita”

Na autoria das letras e poemas aqui cantados há uma dezena de nomes. Por ordem de entrada no disco: Fernando Campos de Castro, José Rebola (dos Anaquim), Maria Luísa Baptista, Manuela de Freitas (que assina quatro temas), António Calém, Helder Moutinho (“com música de Paulo Valentim, o meu compositor de sempre”), Natália dos Anjos, João Mário Veiga, David Mourão-Ferreira e José Fanha. Além da própria Katia, que para lá do tema que abre e fecha o disco, ainda assina um outro, dedicado ao seu filho e escrito antes de ele nascer: Vem (canção para o João Mário). No disco anterior já dedicara uma canção à filha, escrevendo Katia letra e música: Eu gosto tanto de ti (canção para a Mafalda). Esta tinha só a letra, mas teve ajuda: “O Zé Mário e o Pedro de Castro, de pé, violas na mão, começaram a compor e assim nasceu a música.”

Quem diria, canção escrita por José Rebola, foi pedida por Katia quando estava a preparar o disco. “Assisti a uma tertúlia que eles têm, gostei imenso dos Anaquim e convidei-o para escrever. Pedi-lhe uma coisa divertida, ele achou imensa graça e fez-me esta história, que é um engate de trânsito que resulta numa história de amor para a vida. No início estão a despique, mas acabam por ir os dois para casa.” A letra tem uma certa analogia (a começar pelo título) com a história do encontro entre Katia Guerreiro e José Mário Branco. Aliás, gravaram-na em dueto e até fizeram um vídeo. Com uma alteração: onde a letra dizia “vire aqui nesta à direita”, José Mário (que não se imaginava a dizer aquilo) propôs dizer “mas nunca vire à direita.” E assim ficou.

Há dois temas no disco em que o trabalho foi mais ao detalhe que nos outros: Tristeza velha, de Maria Luísa Baptista (no Fado Menor), e Deixar-te um dia, de António Calém, no Fado Mouraria. “Filigrana pura”, diz Katia. “A Maria Luísa é uma presença recorrente no meu repertório. Era a minha segunda mãe. Ela faleceu e eu queria muito cantá-la agora, em jeito de homenagem. Este foi o último poema que ela me enviou em vida.” Quanto ao Mouraria, foi a primeira vez que ela o cantou, em 18 anos de fados. “Foi um desafio para mim, descolar-me de tudo aquilo que ouvi e fazer a minha própria criação. Criou-me alguma ansiedade, mas o José Mário ajudou-me imenso.”

“Uma filha e dois netos”

Findo o trabalho, ouvido o disco, Katia sentiu um vazio. “E agora? Vai acabar esta coisa maravilhosa? Mas não acabou. Falamos muito, acompanhamo-nos muito. Daqui nasceu a coisa mais bonita que podemos ter na vida, a amizade, uma admiração imensa que eu tenho por estes dois senhores, porque a Manuela de Freitas nunca pode ser esquecida neste trabalho, tem uma importância fundamental aqui.” Fora de cena, escrito por ela com música de José Mário Branco, é, diz Katia, um auto-retrato. “É a saída de cena da Manuela de Freitas, muito dolorosa, sentindo que já não pertencia ali porque não se identificava com o que estava a acontecer ao teatro. Quando li este poema, que vinha no tal caderno, identifiquei-me imediatamente com ele. Não por eu ter saído de cena, mas com o medo de sair de cena. Sabendo que tudo o que ali está é o que eu vou sentir.”

Desta experiência, Katia reteve muitas coisas. Mas essencialmente isto: “A direcção dele da minha voz foi emocionante. Estive a pontos de chorar, emocionada pela forma como ele me conduzia para o sítio certo. Foi mágico, este encontro.” E uma outra coisa, mais pessoal: “Depois disto, o Zé Mário disse-me a coisa que mais me comoveu: ‘ganhei uma filha; e dois netos’. Nunca mais me vou desligar destes dois amigos.”