A epidemia, o “vírus-cinema” e a geração que se seguiu: o VIH/Sida no Queer Lisboa

O Vírus-Cinema: Cinema Queer e VIH/Sida dá nome a um extenso programa que inclui retrospectiva no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa, uma exposição na Galeria FOCO e um livro de ensaios. “Era altura de trazer este assunto”, diz o director artístico do festival, João Ferreira.

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Estreado em 1985, Buddies terá sido o primeiro filme a abordar a sida de forma explícita DR

Quando a epidemia de VIH/sida eclodiu, na década de 80, o cinema foi um importante meio de resistência e reflexão. Revisitando esse tempo, o ciclo O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida apresenta-se como um dos eixos centrais da programação desta edição do Queer Lisboa, que arrancou na sexta-feira. Uma ideia que cresceu até se tornar num programa multidisciplinar — uma retrospectiva cinematográfica, um livro, uma exposição —, a que o festival traz um olhar sobre como o cinema filmou a sida, focando em particular o vídeo-activismo dos anos 80 e 90, e sobre o reflexo dessas abordagens nas representações da epidemia na cultura e na sociedade até aos dias de hoje.

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Quando a epidemia de VIH/sida eclodiu, na década de 80, o cinema foi um importante meio de resistência e reflexão. Revisitando esse tempo, o ciclo O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida apresenta-se como um dos eixos centrais da programação desta edição do Queer Lisboa, que arrancou na sexta-feira. Uma ideia que cresceu até se tornar num programa multidisciplinar — uma retrospectiva cinematográfica, um livro, uma exposição —, a que o festival traz um olhar sobre como o cinema filmou a sida, focando em particular o vídeo-activismo dos anos 80 e 90, e sobre o reflexo dessas abordagens nas representações da epidemia na cultura e na sociedade até aos dias de hoje.

O impulso surgiu no final do ano passado, com uma sessão especial do premiado 120 Batimentos por Minuto (2017), de Robin Campillo, numa parceria com a distribuidora Midas Filmes. O ciclo que este sábado se inicia coincide com os 30 anos da criação do Dia Mundial da Luta contra a Sida, mas vai além da efeméride — foi-se construindo ao longo dos anos, descreve João Ferreira, director artístico do Queer Lisboa. A ideia começou a ganhar forma em conversas com colaboradores do festival e activistas da luta contra a sida, “e o ciclo acabou por ter um tamanho muito maior" do que à partida se imaginava.

Porquê “vírus-cinema”? A expressão dá título a um ensaio de Ricardo Vieira Tavares sobre Má Raça (1986), de Leos Carax. Para João Ferreira, “além de ser [um título] muito bonito", essa ideia do vírus-cinema "tem muito que ver também" com a forma como o festival quis "abordar esta filmografia", com aquilo que quis "dar a ver”.

A retrospectiva mostra como o cinema foi afectado pelo VIH/sida, não só porque a abordagem ao tema contaminou, literalmente, a produção, mas porque “o próprio cinema se transformou” com isso. Grande parte dos filmes a mostrar “são inéditos cá”, salienta João Ferreira. “Era importante mostrar estas obras, porque têm tido pouca circulação e são relevantes a vários níveis, quer em termos de cinema, quer em termos sociais e políticos.” Obras emblemáticas e menos esquecidas como Kids (1995), de Larry Clark, Noites Bravas (1992), de Cyril Collard, ou o português E Agora? Lembra-me (2013), de Joaquim Pinto, “dialogarão” com “vídeos mais experimentais, mais activistas”, que surgiram nas décadas “negras” de 80 e 90 mas acabaram por se tornar filmes “quase de biblioteca, de arquivo”.

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Noites Bravas, de Cyril Collard: uma das mais emblemáticas representações da sida no cinema europeu DR

Um desses filmes seminais é Buddies, de Arthur J. Bressan, Jr., o primeiro “que fala sobre a sida de forma absolutamente explícita” a ir para as salas de cinema, em 1985, e que foi “completamente esquecido”. Uma cópia recentemente restaurada será apresentada este domingo, no Cinema São Jorge. “É mesmo impressionante ver como as coisas mudaram. Percebe-se a confusão que existia na altura, a falta de informação, o desconhecimento de todos. É muito forte ver isso hoje”, comenta o director artístico do Queer Lisboa.

Da mesma forma que o cinema foi impelido a mostrar estas realidades, em alguns destes filmes há uma necessidade de agir sobre elas, “um lado pedagógico”. “Os primeiros vídeos feitos nos Estados Unidos, mas também em França e em Inglaterra, eram formas de prevenção e de alerta” — e essa influência, descreve João Ferreira, “vai-se notar no resto do cinema que aborda este tema”.

Esse lado pedagógico é também abordado nalguns dos ensaios do livro O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida, coordenado por João Ferreira e António Fernando Cascais. Esta edição da Associação Cultural Janela Indiscreta, que organiza o festival, reúne textos de 24 autores, portugueses e estrangeiros: médicos e activistas, programadores e críticos (entre os quais os colaboradores do PÚBLICO Augusto M. Seabra, Jorge Mourinha e Nuno Crespo).

Cada ensaio debruça-se sobre um filme, um realizador. Mas também há textos sobre o activismo gerado pela epidemia, e ainda autores que discutem as suas próprias obras, como Jerry Tartaglia, Tom Kalin ou Matthias Müller — realizador alemão “que no final da década de 80 e início da de 90 fez filmes sobre a sida cá em Portugal”, sublinha João Ferreira. O coordenador escreveu dois ensaios: o que abre o livro, sobre as primeiras abordagens ao VIH/sida na ficção e na longa-metragem — o já referido Buddies (1985), Parting Glances (1986), de Bill Sherwood, e An Early Frost (1985), de John Erman —, e outro sobre um dos seus filmes favoritos, Poison (1991), de Todd Haynes. “Começa a tratar o assunto, como muitos realizadores trataram, de uma forma metafórica, no caso dele mesmo alegórica. Isso foi muito interessante.”

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Pensão Globo (1997), do alemão Matthias Müller, foi realizado em Portugal DR

É justamente com o lançamento deste livro de ensaios que o programa arranca este sábado, às 16h30, no Cinema São Jorge. Também a exposição paralela O vírus tem este sábado, pelas 18h, a sua inauguração na Galeria FOCO, reunindo um conjunto de olhares de jovens artistas, comissariado pelo artista plástico Thomas Mendonça. “Para eles foi também uma descoberta, e isto era uma coisa que nos interessava”, diz João Ferreira: “Dar a mostrar estes filmes a uma geração mais nova, que obviamente vive a epidemia de uma forma completamente diferente, mas também perceber como é que a interpreta, como é que olha para ela em termos criativos.” A memória da epidemia inscrita no cinema perde-se também pela falta de acesso à maioria destes filmes, que “muitas vezes não estão acessíveis nem em DVD ou online”. “Do que tenho falado com uma geração mais nova, estão muito curiosos. Isso também foi um dos incentivos, era altura de trazer este assunto e de dar a conhecer estas obras”, nota João Ferreira.

O Queer Lisboa acontece no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa de 14 a 22 Setembro. Além das sessões competitivas e do ciclo Vírus-Cinema, a programação conta com as secções Panorama Longas-Metragens, Panorama Special Focus, Panorama Curtas-Metragens, Panorama Documentários Sobre Moda, Queer Pop e Hard Nights.