Uma “via laica” pelos corredores do shopping Brasília
A Circolando estreia esta sexta-feira a quarta criação do projecto Espírito do Lugar. Depois de paragens desconhecidas da cidade ao ar livre, aventura-se agora pelos corredores e espaços sombrios do histórico centro comercial portuense. Uma viagem não aconselhável a quem sofra de claustrofobia, vertigens ou nostalgia…
Vista do (também) sombrio jardim da Rotunda da Boavista, a frontaria do Centro Comercial Brasília é, à noite, a imagem da desolação: apenas três janelas e a montra de um pronto-a-vestir estão iluminadas; no resto, apenas brilha a luz verde do néon que identifica este shopping inaugurado em 1976 e pioneiro, no género, na Península Ibérica. Actualmente, e desde há vários anos, é um edifício-fantasma à noite, e pouco menos do que isso de dia. Qual será o espírito deste lugar?
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Vista do (também) sombrio jardim da Rotunda da Boavista, a frontaria do Centro Comercial Brasília é, à noite, a imagem da desolação: apenas três janelas e a montra de um pronto-a-vestir estão iluminadas; no resto, apenas brilha a luz verde do néon que identifica este shopping inaugurado em 1976 e pioneiro, no género, na Península Ibérica. Actualmente, e desde há vários anos, é um edifício-fantasma à noite, e pouco menos do que isso de dia. Qual será o espírito deste lugar?
É a resposta – uma resposta – a esta questão que a Circolando propõe na quarta edição do projecto Espírito do Lugar, incluído no programa Cultura em Expansão, da Câmara Municipal do Porto.
Espírito do Lugar 4.0: Brasília é, de novo, um espectáculo-percurso, que desafia os espectadores a descobrirem a cidade na sua face menos conhecida, menos iluminada, e que em edições anteriores percorreu o Bonfim, a Cantareira e as Fontainhas. No final de um dos ensaios, André Braga (que, com Cláudia Figueiredo, assina a direcção artística) arriscou, em declarações ao PÚBLICO, a sua leitura do espírito deste lugar com uma imagem inusitada: “O Brasília é como uma galinha que está cheia de sono mas não consegue dormir, está permanentemente a piscar os olhos, simultaneamente adormecida e alerta…”. Este shopping, principalmente à noite, é assim: há sempre uma luz acesa aqui ou ali, mas não há ninguém, não se passa nada.
E o encenador recorda mesmo a sua experiência de criança quando, vivendo junto à Rotunda da Boavista, era frequentemente levado pelos pais a este shopping hiper-movimentado, onde quase ia ficando sem uma mão na sua "feérica" escada rolante – a primeira do país!
Muitos dos espectadores que já lotaram os lugares disponíveis para verem/fazerem este espectáculo-percurso – entre esta sexta-feira e domingo, mas também nos dias 22 e 23, sempre às 21h – irão certamente experimentar também o contraste entre o passado e o presente deste lugar, que, enquanto máquina de fazer comércio, representa o expoente da sociedade de consumo.
"Via sacra" em seis estações
O consumo, a vida urbana, o progresso, o lugar do indivíduo na sociedade contemporânea são, de resto, temas que a equipa de actores-criadores da Circolando vai encenando-interpretando ao longo desta espécie de “via sacra”, versão laica, que, ao longo de duas horas e meia, se desdobra em seis estações por entre os corredores, pisos e lugares labirínticos do shopping. Numa delas, os espectadores, conduzidos por um guia (haverá seis guias para outros tantos grupos de 25 espectadores que farão percursos paralelos pelo Brasília), chegam a uma das escadas rolantes: uma mulher mascarada e de vestido azul transforma-se numa espécie de Sísifo no seu esforço inglório de subir uma escada em movimento contrário. Durante 20 minutos, debate-se entre correr/insistir, desistir/fugir perante essa máquina inexorável do progresso que vai deixando as pessoas para trás. Em fundo, uma voz canta e fala sobre esse tempo perdido em que multidões de passantes subiam na direcção certa da escada…
“Uma das nossas fontes foi o livro de Walter Benjamin, Passagens [1927-40], uma colectânea em que ele reflecte sobre a arqui-paisagem do consumo. analisando o aparecimento das galerias comerciais em Paris no final do século XIX”, explica André Braga.
Além das conversas com as pessoas que (ainda) trabalham no Brasília, outra fonte de Espírito do Lugar 4.0 – acrescenta o encenador – foi 24/7: O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, de Jonathan Crary, que se ouve citado num dos pisos do parque de estacionamento, onde uma espécie de “fantasma da ópera” disfarçado de varredor enclausura os espectadores num quarto escuro e, com voz gutural, lhes explica "o caso do pardal de coroa branca que voa sete dias sem dormir". E como manter as pessoas sem dormir é o sonho da máquina militar dos Estados Unidos e da própria máquina de consumo: “O espectador/consumidor/militar 24/7 pode estar o tempo que quiser, ver, comprar, lutar, sem dormir”, grita a personagem-mutante num cenário de ventoinhas com música de parada militar em fundo.
Nova corrida-nova viagem nesta espécie de “comboio fantasma”, não aconselhável a quem sofra de claustrofobia: outra das estações decorre no recinto do squash. Aqui, duas mulheres jovens dançam uma coreografia que associa o exercício de ginásio às danças militares norte-coreanas e ao imaginário do hipismo, parodiando os tempos modernos até à exaustão física.
A estação seguinte tem lugar na cobertura do edifício, o que possibilita ao espectador ver as estrelas, os aviões e a silhueta do Porto nocturno, até que é surpreendido com a imagem de uma mulher sonâmbula a percorrer os telhados e a dissertar sobre a Guerra Peninsular (e outras guerras) depois de focar um holofote no monumento no centro da Rotunda da Boavista, mas também a citar Baudelaire: “O progresso é a crença dos preguiçosos”.
Charlot já não mora aqui
Já na plateia (ainda) confortável do Cinema Charlot, encerrado em 2001 – por baixo dele, há agora apenas Zero Tabus, um complexo de cabines de vídeos pornográficos –, uma voz feminina recorda, no escuro da sala mas com o ecrã apagado, os tempos em que aí se puderam ver filmes de Chaplin e de Bergman, mas também a Heidi e o Sandokan. À saída de outra, percorrem-se corredores e cabines em ruínas e pejados de lixo.
E sobe-se novamente a uma das coberturas, para, no recinto de uma esplanada-discoteca abandonada, ouvirmos os lamentos de um palhaço pobre, velho e miserável – do texto A Morte do Palhaço, de Raul Brandão –, incapaz de montar o seu circo, e lançando “um grito fundo na noite: estou seco, sem emoções, cheio de raiva”. A cena transforma-se depois em paródia, com o palhaço-actor a interpretar uma das últimas canções de Freddie Mercury, The show must go on (do álbum dos Queen, Innuendo, de 1991), acompanhado por um disco riscado…
No final, sexta estação, público, guias e autores-intérpretes reúnem-se na escadaria que liga os pisos 0 e 1 para verem e comentarem um documentário sobre o Brasília e o espírito deste lugar que actualmente é habitado mais por fantasmas do que por gente. E talvez isso possa contribuir para se encontrar um futuro diferente para este espaço que muitos vêem e visitam ainda com certa nostalgia. Ou, pelo contrário, talvez o shopping seja uma estação definitivamente apagada nesse percurso irreversível do dito progresso humano. Mesmo se, como uma galinha, continua a piscar os olhos na noite portuense.