Ainda a propósito da PGR
O fim do mandato de seis anos da Procuradora-Geral da República poderia servir para um debate sobre o sucesso da investigação criminal neste período. E digo “poderia”, porque não creio que esteja a haver qualquer “debate” ou “reflexão” sobre o tema.
O fim do mandato de seis anos da Procuradora-Geral da República, nos termos constitucionais, poderia servir para um debate sobre o eventual sucesso da investigação criminal neste período, designadamente a investigação no domínio da criminalidade económica. E digo “poderia”, porque não creio que esteja a haver qualquer “debate” ou “reflexão” sobre o tema.
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O fim do mandato de seis anos da Procuradora-Geral da República, nos termos constitucionais, poderia servir para um debate sobre o eventual sucesso da investigação criminal neste período, designadamente a investigação no domínio da criminalidade económica. E digo “poderia”, porque não creio que esteja a haver qualquer “debate” ou “reflexão” sobre o tema.
O que me parece que há de forma simplista é uma espécie de clubite fervorosa em torno da continuação de uma pessoa, Joana Marques Vidal, assumida curiosamente mais por jornalistas do que por pessoas ligadas ao funcionamento da justiça ou à decisão política, ficando por demonstrar ainda, de modo claro, o sucesso e o insucesso de diversas investigações lideradas pelo Ministério Público e iniciadas nos últimos anos. Sendo que eu não sou daqueles que simplesmente mede o “sucesso” pelo número de acusações ou de condenações - já que ao Ministério Público cabe zelar pela defesa da legalidade e pela defesa da inocência até dos que acusa, caso se confronte com as limitações ou erros das suas próprias acusações.
Sempre me chocou a ideia de um qualquer “fim da impunidade” dos poderosos, que teria chegado com Joana Marques Vidal. Foi um soundbite apelativo a dado momento, mas incomodou-me porque não deixou de ser também um atestado de incompetência ou – pior – de facilitismo passado ao Ministério Público e à investigação criminal em Portugal. E não acredito que centenas ou milhares de magistrados do Ministério Público com responsabilidades na direcção dos inquéritos ao longo dos anos se revejam na ideia de que antes da actual Procuradora-Geral eles eram, afinal, os rostos da impunidade (onde até por ironia se incluiriam o seu irmão, magistrado do Ministério Publico, e o seu pai, que foi director nacional da Polícia Judiciária durante seis anos com Cavaco Silva); após Joana Marques Vidal, é agora ela a campeã da luta contra o mal, reactivando esse Ministério Público inerte e incapaz.
Em todo o caso, seguramente que um Procurador-Geral da República, apesar da sua posição de cúpula numa estrutura hierarquizada e segmentada por diferentes chefias, terá responsabilidades no modo como o Ministério Público actua em concreto. Por isso mesmo eu gostaria de o ver na Assembleia da República a explicar e a defender as suas opções, a sua organização e os seus resultados. Não por ser Joana Marques Vidal, a campeã da luta contra a impunidade (e, já agora, das violações do segredo de justiça e do fim público da presunção da inocência, por exemplo), mas por a acção do Ministério Público ser demasiado importante para ser deixada de fora da discussão e da avaliação públicas.
E os deputados não podem estar incapacitados de falar, questionar e apreciar a actuação do Ministério Público só porque há políticos a serem investigados ou julgados, o que sempre houve e haverá, até porque a eles cabe a definição da política criminal a executar pelo Ministério Público. Devo dizer até, que me preocupa muito mais a ideia de um Governo, Parlamento ou Presidente “reféns” de um Procurador-Geral e de uma ideia justicialista que nele se encarne, do que qualquer hipótese de retorno a uma “impunidade” que, duvido, algum dia tenha existido.
Como qualquer pessoa que já tenha frequentado tribunais pode atestar, a actuação concreta do Ministério Público é a que mais dúvidas pode suscitar no teatro judiciário. Não o digo por suspeitas de pessoas: penso em termos estruturais. Um breve exemplo que, creio, demonstra bem a sensibilidade da função. Confrontando-me, como sucedeu, com acusações do Ministério Público cheias de erros e de factos dados como provados que eram simples falsidades, também vi no julgamento magistrados do Ministério Público pedirem de forma corajosa a absolvição de quem poucos meses antes estava, pelo mesmo Ministério Público, acusado sem qualquer dúvida por vários crimes e em condições de dever passar diversos anos na prisão.
Pediu-se a absolvição porque foi no julgamento que se avaliou a verdade ou não da acusação, correspondendo à estrutura acusatória que temos no processo penal, a melhor que se conhece até hoje. Mas a convicção que transparecia das acusações iniciais do mesmo Ministério Público era tal que o próprio arguido já duvidava do que era a realidade...
A situação concreta que recordo passou-se antes de Marques Vidal ser Procuradora-Geral da República. Seguramente que o procurador ou procuradora que acusou naquele caso já estava igualmente imbuído, e de boa-fé, da mesma ideia de “fim da impunidade” e conformou-se com a verdade que descobria na sua leitura dos factos. Mas se confundirmos acusações com sentenças passadas após um julgamento, com todas as limitações que igualmente estas últimas possam ter, não é lutar contra a impunidade o que fazemos. É apenas corresponder aos apelos de sangue que a rua está sempre pronta a pedir.