Um dia decisivo para a União
Continuar a permitir o comportamento batoteiro de Viktor Orbán na sua construção de uma “democracia iliberal” seria fazer dos valores fundamentais da União letra morta.
Quando os leitores tiverem esta crónica à frente dos olhos já muito provavelmente Jean-Claude Juncker terá pronunciado o seu discurso do Estado da União Europeia, a uma hora que pouco ajuda os cidadãos da União a estarem atentos, mesmo que desejassem saber para onde vai a Europa: nove da manhã em Estrasburgo, oito da manhã em Lisboa.
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Quando os leitores tiverem esta crónica à frente dos olhos já muito provavelmente Jean-Claude Juncker terá pronunciado o seu discurso do Estado da União Europeia, a uma hora que pouco ajuda os cidadãos da União a estarem atentos, mesmo que desejassem saber para onde vai a Europa: nove da manhã em Estrasburgo, oito da manhã em Lisboa.
Também é possível que o discurso de Juncker passe despercebido, como passaram os anteriores discursos do Estado da União, por serem abundantes em generalidades e escassos em novidades reais. Mas não se deixem enganar por essa sonolência: a verdade é que hoje é mesmo um dia decisivo para a Europa. Provavelmente não tanto pelo discurso de Juncker, e possivelmente não só pelo voto parlamentar na reforma do direito de autor, que também ocorrerá hoje — numa daquelas decisões aparentemente hiper-técnicas em que a UE é especialista, mas que tem implicações concretas em coisas que fazemos todos os dias. Dependendo como votarem os eurodeputados hoje, coisas tão simples como partilhar uma imagem na internet pode começar a ter de passar por um mecanismo automático de filtragem e bloqueio de conteúdos que corresponde, demos-lhe as voltas que lhe dermos, a um sistema de censura prévia. O caso do pianista que, na semana passada, viu interditada a difusão da sua interpretação caseira de uma peça de música clássica porque uma multinacional considerava que detinha a propriedade intelectual de algo cujo autor morrera há séculos e cujo intérprete era o próprio difusor dá-nos uma imagem do que poderá acontecer daqui para a frente a milhões de utilizadores apanhados num inferno de falsos positivos e decisões automáticas sem recurso na prática. Há certamente melhores ideias para reformar o direito de autor, e esperemos que os eurodeputados escolham bem entre as mais de trezentas emendas apresentadas a votação — à vista de todos e com transmissão em direto.
Mas a razão porque hoje é mesmo um dia decisivo para a União tem a ver com outro voto — sobre se o governo húngaro está ou não em violação séria dos valores fundamentais da União. Estes valores foram consagrados no artigo 2 do Tratado da União Europeia, após o tratado de Lisboa: a democracia, o estado de direito, a liberdade, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos, incluindo das pessoas oriundas de minorias. Há mais de cinco anos que um primeiro relatório, de que fui autor, determinou que o comportamento do governo de Viktor Orbán se desviava sistematicamente destes valores e que, ao continuar a fazê-lo, inevitavelmente se chegaria a uma situação em que seria necessário usar o artigo 7 do mesmo tratado, que possibilita o estabelecimento de sanções para o governo do estado-membro em causa. Vai a votos o relatório da minha então colega Judith Sargentini, Verde holandesa, que defende a utilização desse artigo 7. A maioria para o conseguir tem de ser de dois terços. Se houver essa maioria, estaremos perante um momento histórico e necessário. Mas não um momento feliz. Nunca é bom quando um estado-membro da União chega ao ponto em que o seu governo despreza e espezinha reiteradamente os valores da União — de tal forma que, se fosse agora um país candidato, seria impossível que conseguisse aderir à UE. Mas, chegado ao ponto em que estamos, não é possível continuar a fingir que a União pode subsistir se continuar a dar muito mais atenção a umas décimas de défice do que à violação de princípios fundamentais do estado de direito.
Nesse sentido, o discurso mais importante já foi dado em Estrasburgo esta semana — ontem, pelo próprio Viktor Orbán. Usando a técnica de sempre dos demagogos e autoritários, Orbán escondeu-se por detrás do povo, declarando que o relatório do Parlamento Europeu era “um insulto ao povo húngaro” e “uma condenação à Hungria que durante mil anos tem sido um membro da Europa cristã”. Ou seja, Orbán quer não só fazer-nos crer que ele é o povo húngaro como pelos vistos acha mesmo que nele está a essência milenar da nação húngara. Ao votar, o Parlamento Europeu deve claramente demonstrar que não aceita estes termos: é o governo húngaro, e não a Hungria e o seu povo, que está em causa. E trata-se de um governo que participou na escrita do artigo 2, conseguiu que lhe fossem introduzidas alterações, foi o primeiro a obter a ratificação parlamentar do Tratado de Lisboa e comprometeu-se voluntariamente a a respeitá-lo. Continuar a permitir o comportamento batoteiro de Viktor Orbán na sua construção de uma “democracia iliberal” seria fazer dos valores fundamentais da União letra morta e permitir que o autoritarismo continuasse a contagiar outros países da UE.
Não precisávamos de ter chegado aqui. Se o PPE tivesse expulsado o FIDESZ de Orbán, a mensagem de que os valores se levam a sério já teria passado muito antes. Agora, alguns partidos do PPE reconhecem implicitamente o erro, anunciando que vão hoje votar contra Orbán. É o caso de suecos, luxemburgueses e até austríacos. Infelizmente, em Portugal, chegamos ao dia do voto sem nenhuma clareza de PSD e CDS em relação ao que tencionam fazer neste dia decisivo para a União.