Perda de gene terá ajudado os humanos a serem bons corredores

Através de uma experiência com ratinhos, uma equipa de cientistas percebeu que a desactivação de um gene há milhões de anos poderá ter contribuído para que os humanos se tornassem corredores de longas distâncias.

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Os humanos são dos melhores corredores do reino animal Paulo Pimenta

Há cerca de dois milhões de anos, antepassados do humano moderno (Homo sapiens) sofreram uma mutação genética que hoje tem impacto no elevado risco de cancro associado ao consumo de carne vermelha ou à diabetes tipo 2. Que mutação foi essa? Os humanos deixaram de ter o gene CMAH funcional. Mas a perda desse gene não trouxe só coisas más. Esta terça-feira ficámos a saber num artigo científico publicado na revista Proceedings of  the Royal Society B que esta alteração genética terá ajudado também os humanos a tornarem-se num dos melhores corredores do reino animal.

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Há cerca de dois milhões de anos, antepassados do humano moderno (Homo sapiens) sofreram uma mutação genética que hoje tem impacto no elevado risco de cancro associado ao consumo de carne vermelha ou à diabetes tipo 2. Que mutação foi essa? Os humanos deixaram de ter o gene CMAH funcional. Mas a perda desse gene não trouxe só coisas más. Esta terça-feira ficámos a saber num artigo científico publicado na revista Proceedings of  the Royal Society B que esta alteração genética terá ajudado também os humanos a tornarem-se num dos melhores corredores do reino animal.

A história da separação do humano e do CMAH aconteceu entre há dois e três milhões de anos quando o género Homo surgia em África. Nessa altura, os antepassados do Homo sapiens – que apareceu há cerca de 300 mil anos no continente africano – faziam a transição das florestas para as savanas.

Também houve grandes mudanças na fisiologia e na biomecânica do esqueleto dos humanos que resultaram em pernas longas e ágeis, pés grandes, músculos glúteos fortes e um amplo sistema de glândulas sudoríparas capazes de regular a temperatura do corpo e eliminar substâncias tóxicas. Essas mudanças – num tempo em que já andávamos direitos – deram um forte contributo para que nos tornássemos bons corredores. 

Os nossos antepassados conseguiam caçar em dias de muito calor (enquanto outros animais dormiam), correr longas distâncias sem ficarem muito cansados ou perseguir uma presa até à sua exaustão na chamada “caça de persistência”. “A corrida de resistência terá oferecido ao Homo vantagens sobre outros animais que estavam menos preparados para caçadas de longas distâncias na savana, incluindo a capacidade de caça de persistência, assim como uma aptidão cada vez maior para explorar grandes áreas e se movimentar através de vastas paisagens”, lê-se no artigo. Agora, há também uma explicação molecular para sermos bons corredores.

Já se sabia que há cerca de dois milhões de anos o humano tinha perdido o CMAH e que isso teve consequências. Porquê? O CMAH codifica uma proteína que catalisa a conversão do ácido siálico N-acetilneuramínico (Neu5Ac) para o N-glicolilneuramínico (Neu5Gc). Mas ao dar instruções para se fazer o Neu5Gc, o gene está a estimular a produção de um açúcar tóxico para nós. Como ficámos sem o CMAH, o Neu5Ac deixou de se acumular e o Neu5Gc de ser produzido. “Esta mudança molecular afecta todas as células do nosso corpo”, diz ao PÚBLICO Ajit Varki, da Universidade da Califórnia (EUA) e um dos autores do trabalho.

Ao longo dos anos, tem-se relacionado a desactivação do CMAH à imunidade inata já aperfeiçoada nos primeiros hominídeos. E percebeu-se que os ácidos siálicos podem ser biomarcadores para o cancro. Mas também há desvantagens: o gene pode contribuir para um elevado risco de cancro associado ao consumo de carne vermelha (pois aí o CMAH está activo) ou para um grande risco de diabetes tipo 2 associado aos ácidos siálicos. “[O CMAH  e os seus ácidos siálicos] são uma espada de dois gumes”, considera Ajit Varki.

Ratinhos na passadeira

Para perceber a ligação deste gene com a corrida, a equipa de Ajit Varki fez uma experiência com ratinhos sem CMAH. Montou-se uma roda e uma passadeira de corrida para esses roedores e avaliou-se a sua capacidade de exercício. “Notámos um desempenho cada vez maior durante os testes na passadeira e depois dos 15 dias de corrida na roda”, refere Jon Okerblom, também da Universidade da Califórnia e responsável pela experiência.

Analisaram ainda os ratinhos do ponto de vista fisiológico e observaram que esses mostravam grande resistência à fadiga, uma elevada respiração celular e os músculos dos membros posteriores tinham mais vasos sanguíneos para que o fornecimento de sangue e oxigénio aumentasse.

Concluiu-se assim que a perda do CMAH melhorou a capacidade do músculo-esquelético (tecido responsável pelos movimentos) de utilizar oxigénio.

E nos humanos? “Se transponível para os humanos, a perda do CMAH forneceu uma vantagem selectiva para o Homo ancestral durante a transição das florestas para uma exploração cada vez maior de recursos e para um comportamento de caçador-colector na savana”, responde-se no artigo. “Esta é a primeira explicação molecular provável sobre como os ancestrais humanos se tornaram campeões de corrida de longa distância”, diz Ajit Varki.

Não se sabe muito bem como ficámos sem o CMAH, avisa o cientista: “É impossível ter a certeza sobre o que aconteceu nessa altura da evolução.” Mas uma das hipóteses é que isso ocorreu em resposta a um antigo agente patogénico que se terá ligado ao Neu5Gc (que se encontra à superfície das células e as ajuda a reconhecerem-se) e tenha feito pressão para que a mutação genética fosse desencadeada.

Ajit Varki realça que ainda se tem de entender os detalhes sobre os mecanismos envolvidos na perda do gene. Mesmo assim, reforça que este estudo é só a base para investigação futura: “[Este trabalho dá-nos] novas abordagens para compreender o que estimula a aptidão cardiovascular e a capacidade de corrida nos humanos.” Além disso, permite-nos recuar até aos primórdios da evolução humana e perceber como pequenas mudanças há milhões de anos nos fazem (ainda) hoje grandes corredores.