Beatriz Nunes, uma cantora entre a fragilidade e a força

Chamada ao programa de showcases da European Jazz Conference que decorre entre 13 e 16 de Setembro, no CCB, Beatriz Nunes apresenta o seu álbum Canto Primeiro.

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Rita Carmo

Não há muito tempo, Beatriz Nunes passou as mãos por uma antiga entrevista sua que tem guardada no meio de outras palavras escritas sobre o seu percurso de cantora. Nesse questionário, publicado em 2014, era confrontada com a clássica pergunta que pede ao inquirido para se imaginar num amanhã de médio prazo. No caso de Beatriz, o “Onde te vês daqui a cinco anos?” teve por resposta “Gostava de nessa altura já ter um projecto em nome próprio.”

Mesmo com os afazeres da maternidade e da sua colaboração com os Madredeus – em 2011 foi chamada a ocupar o anterior lugar de Teresa Salgueiro – a encherem-lhe os dias, Beatriz não falhou no futuro que se vaticinava. Se a vontade de avançar com as suas composições e o seu grupo já vinha fermentando há algum tempo, no período de maior actividade dos Madredeus faltava-lhe tanto a disponibilidade quanto a maturidade e a confiança para se atirar a esse desejo fervente. “Já tinha alguma música escrita”, conta ao Ípsilon, “mas só em 2017 comecei a perceber que isso tinha de se concretizar em algo físico e palpável. Tinha de arriscar e ultrapassar as inseguranças do processo criativo, o medo da rejeição, tinha de aprender a lidar com isso.”

Em alguém que cresceu a ouvir Chico Buarque e a MPB, que se formou de acordo com os mandamentos da música clássica, que se mostrou ao mundo abrigada pelas canções de câmara do grupo de Pedro Ayres Magalhães, que tocava com frequência o reportório de José Afonso, Fausto e José Mário Branco em quarteto e que tinha descoberto a liberdade para espraiar a voz no contexto do jazz, parte da dificuldade prendia-se com a clarificação de uma linguagem que sentisse como uma segunda pele. Embora não se tenha sentado a imaginar, friamente, a forma de sintetizar todas estas inclinações musicais, a verdade é que o álbum de estreia de Beatriz Nunes, Canto Primeiro, é habitado por todos estes mundos sem qualquer risco de colisão.

Ao meter as mãos nas entranhas das canções e perceber melhor a natureza dos temas e respectivos arranjos que se iam afirmando, a certeza inicial da cantora foi a de que estava a caminhar para “uma linguagem mais crua e despida – quase austera, até certo ponto”. Consequência provável do rigor da música erudita, mas ditada também pela abordagem do reportório dos tais cantautores portugueses – mestres no uso da palavra e na ligação à música popular portuguesa – e de Mário Laginha, João Paulo Esteves da Silva ou Cristina Branco que foi experimentando com a banda formada por Luís Barrigas (piano), Mário Franco (contrabaixo) e Jorge Moniz (bateria), tudo bons rapazes do jazz nacional. São eles quem carrega um jazz de rasto português em Andorinhas, quem a leva para uma zona patenteada por Mário Laginha e Maria João em Ouroboros, quem faz um número de equilíbrio entre o popular e o erudito em Aurora tem um menino, quem adoça um tom brasileiro em Valsa de um bom rapaz ou atira Beatriz para lá da fronteira com a pop em Sul e sueste.

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A poesia surge em Canto Primeiro por clara influência do “contexto familiar” da cantora: Beatriz Nunes é filha da editora da Mariposa Azual, Helena Vieira Rita Carmo

Quase sem precisarem de palavras para, em colectivo, rumarem a estes diferentes lugares: “Neste tipo de música”, diz a autora, “as pessoas têm de estar realmente sintonizadas, têm de perceber que estão a falar da mesma coisa.” E dá como exemplo a gravação de Senhora do Ó (tema melancólico composto para poema de Margarida Vale de Gato), quando, sem qualquer combinação prévia, o solo de piano baixa a dinâmica no momento em que regressa ao tema e a voz reaparece a fazer soar um verbo que termina na palavra “repouso”. E enquanto escutamos cada sílaba desse recomeço, os músicos suportam o desenho melódico com um mínimo de intervenção, como se os próprios instrumentos acolhessem a ideia de repouso, suspendendo-se diante da palavra.

Super mestrado

Terá sido a originalidade desta confluência de factores e uma música fortemente ancorada na melodia a levar à selecção de Beatriz Nunes para os showcases de artistas portugueses programados para a European Jazz Conference (actua no sábado; em Novembro integra o cartaz do Misty Fest), a decorrer entre 13 e 16 de Setembro no Centro Cultural de Belém – participando ainda no painel que debaterá a presença do jazz nacional no contexto europeu. E a sua condição dupla de participante faz inteiro sentido quando pensamos que a matriz musical de Canto Primeiro começou a encontrar um enquadramento no reportório de autores locais (recordemos: de Zeca a Laginha) que Beatriz foi testando em palco. “Foi uma espécie de moldura, foi o ensaio de uma linguagem para o grupo e para mim como intérprete.”

Ao sentir-se confortável enquanto cantora e arranjadora daquele material, Beatriz descobriu também que não conseguiria manobrar o inglês (língua oficial do jazz) com a mesma desenvoltura e a mesma riqueza do que o português, trazendo desse período a Canção da paciência, de José Afonso. Quase sem dar por isso, ao juntar as letras que escreveu para o disco acabou por identificar uma temática que teimava em repetir-se: os ciclos, os retornos, as repetições. Desde o voo das Andorinhas que prenuncia a chegada de uma nova estação à serpente Ouroboros que morde a própria cauda ou à Senhora do Ó (que é Margarida Vale de Gato via Padre António Vieira num tema que “tem algo de canto chão, de bordão, de espaço”) enredada numa maternidade que leva alguém a continuar-se através de outros.

A poesia de Vale de Gato e de Ângelo de Lima surgem em Canto Primeiro por clara influência do “contexto familiar” da cantora. Filha da editora da Mariposa Azul, Beatriz cresceu a conviver com Adília Lopes ou Nuno Moura, a testemunhar o nascimento de colectivos poéticos, não tendo por onde escapar ao “impacto forte” que estas vivências produziram na sua relação intensa com a literatura. Essa literatura que alastra aos temas de Canto Primeiro, álbum por si financiado e em que deu por si a pensar: “O dinheiro que estou a gastar neste disco é como pagar um super mestrado, mas isto vale muito mais porque sinto na pele o que é criar um projecto, gravar, gerir recursos humanos, gerir timings, trabalhar com a malta do estúdio, a fábrica, as fotos, a designer, tudo.”

A escola com Pedro Ayres Magalhães nos Madredeus ensinou-a a não deixar nada ao acaso. E a saber que a imagem para o álbum deveria situar-se “entre o austero e o ingénuo, entre a fragilidade e a força”. Dificilmente haverá melhor definição para a sua música – de uma enorme riqueza, mascarada de simplicidade.