Igreja e abusos: não ter medo
A Francisco e à Igreja, nesta hora difícil, resta o esteio do grito bíblico do Antigo e do Novo Testamento: “não tenhas medo!”, “não temais!”.
1. Abateu-se sobre a Igreja Católica uma das mais graves crises da sua história: a crise dos abusos sexuais. A descoberta de padrões sistémicos de abuso sexual de menores ou de maiores vulneráveis por padres católicos é devastadora. O comportamento padrão assenta num binómio: ao crime praticado soma-se o encobrimento pela hierarquia, que tinha obrigação de o punir e denunciar. Esta constância da atitude de encobrimento e de ocultação evidencia uma dimensão institucional, que obviamente atinge a Igreja enquanto tal e não apenas os concretos abusadores. Este padrão “crime-encobrimento”, de resto, é comum aos países em que se verificou um problema sistémico (Estados Unidos, Chile, Irlanda, Austrália) e aos países em que subsistem apenas casos pontuais e esparsos. O que naturalmente faz avultar a dita responsabilidade institucional. Note-se que esta dimensão institucional não resultou decerto, em muitos casos, de uma decisão organizada ou deliberada. Basta conhecer a “cultura organizacional” de tradição católica que aponta invariavelmente para a máxima “o escândalo é pior do que pecado” para perceber a disseminação do fenómeno da ocultação. Em Portugal há algumas décadas, especialmente em meios pequenos, esta “máxima moral”, muitas vezes defendida para evitar o efeito de imitação, era dominante. E ainda hoje é frequentemente invocada em alguns dos grupos católicos mais conservadores. É a velha cultura “quem não vê, não peca”, que o mesmo é dizer, “quem não sabe, não peca”. Como os padres abusadores percepcionaram a prática de que a “salvaguarda da instituição” estava à frente da “protecção das vítimas”, gerou-se um sentimento de impunidade, que seguramente potenciou o fenómeno. Uma coisa é certa: a crise dos abusos sexuais não atinge apenas a esfera individual de cada criminoso, ela atinge a Igreja no seu todo e, em particular, a hierarquia e o clero.
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1. Abateu-se sobre a Igreja Católica uma das mais graves crises da sua história: a crise dos abusos sexuais. A descoberta de padrões sistémicos de abuso sexual de menores ou de maiores vulneráveis por padres católicos é devastadora. O comportamento padrão assenta num binómio: ao crime praticado soma-se o encobrimento pela hierarquia, que tinha obrigação de o punir e denunciar. Esta constância da atitude de encobrimento e de ocultação evidencia uma dimensão institucional, que obviamente atinge a Igreja enquanto tal e não apenas os concretos abusadores. Este padrão “crime-encobrimento”, de resto, é comum aos países em que se verificou um problema sistémico (Estados Unidos, Chile, Irlanda, Austrália) e aos países em que subsistem apenas casos pontuais e esparsos. O que naturalmente faz avultar a dita responsabilidade institucional. Note-se que esta dimensão institucional não resultou decerto, em muitos casos, de uma decisão organizada ou deliberada. Basta conhecer a “cultura organizacional” de tradição católica que aponta invariavelmente para a máxima “o escândalo é pior do que pecado” para perceber a disseminação do fenómeno da ocultação. Em Portugal há algumas décadas, especialmente em meios pequenos, esta “máxima moral”, muitas vezes defendida para evitar o efeito de imitação, era dominante. E ainda hoje é frequentemente invocada em alguns dos grupos católicos mais conservadores. É a velha cultura “quem não vê, não peca”, que o mesmo é dizer, “quem não sabe, não peca”. Como os padres abusadores percepcionaram a prática de que a “salvaguarda da instituição” estava à frente da “protecção das vítimas”, gerou-se um sentimento de impunidade, que seguramente potenciou o fenómeno. Uma coisa é certa: a crise dos abusos sexuais não atinge apenas a esfera individual de cada criminoso, ela atinge a Igreja no seu todo e, em particular, a hierarquia e o clero.
2. Não vale a pena enfatizar a gravidade dos crimes sexuais em geral e daqueles que são praticados sobre crianças em particular. O horror é indisfarçável. Mas a prática destes crimes por ministros consagrados da Igreja é ainda mais censurável. Mais censurável por frustrar e defraudar a confiança quase absoluta que pais e famílias devotas (e não devotas) depositam nos sacerdotes. Mais censurável por os sacerdotes terem especiais obrigações humanas, éticas e morais. Mais censurável porque a Igreja perfilhou e continua a perfilhar uma doutrina moral sobre as relações afectivas e sexuais que é rígida, inflexível e, por vezes, desumana. Mais censurável porque (ainda) dedica à moral sexual uma centralidade inusitada. Com efeito, como pode pregar-se uma doutrina moral rígida e fechada, supostamente “pura”, e depois não actuar perante a prática de crimes sexuais hediondos e altamente reprováveis (mesmo à luz de uma moral sexual libertária)? A violação ou abuso sexual de uma criança é um crime repelente, mas praticado por um ministro da Igreja e “tolerado” ou “protegido” pelos seus superiores é ignominioso. O dano provocado por estas revelações é de enormes proporções. Daí que a Igreja tenha de pedir perdão, de encontrar respostas para as vítimas e suas famílias e de dar uma satisfação à comunidade dos crentes e dos não crentes.
3. A consciência da gravidade do fenómeno e até da resposta começou na parte final do pontificado de João Paulo II, altura em que este estava já muito debilitado, com a consequente paralisia da Cúria. Bento XVI assume a questão como prioritária (juntamente com a reforma das finanças vaticanas), pedindo perdão, avançando com a “tolerância zero” e com a colaboração com as autoridades civis, bem como com as reparações. Ao fim de uns anos, a compreensão de que a podia já não estar em ou não ter condições para ultrapassar as resistências da Cúria, levou-o a gesto revolucionário e seminal: a renúncia. E com isso a abrir a porta à chegada de Francisco, ou seja, de um Papa que não estivesse “marcado” pelos jogos da corte vaticana. Francisco manteve a mesma determinação no combate aos abusos sexuais que vinha de Bento XVI, mas renovou largamente o governo da Igreja. Ao mesmo tempo, com a sua apologia da Igreja como “hospital de campanha”, mostrou uma abertura que desafia o conservadorismo e o tradicionalismo de alguns. A Igreja pode, deve e tem de fazer mais, mas será profundamente injusto dizer que Bento XVI ou Francisco transigiram ou pactuaram com o flagelo dos abusos sexuais.
4. É fundamental pedir perdão, acolher as vítimas, ressarci-las. É também imperioso denunciar todos os casos às autoridades civis, organizar os processos canónicos, encontrar remédios processuais (mesmo que só canónicos) para os crimes prescritos. O abuso tem de ser condenado, mas o encobrimento não pode ser tolerado. Ele possibilitou, ainda que não intencionalmente, uma grande parte dos abusos e é ele que põe em crise a Igreja como comunidade e como instituição.
5. Porque a crise tem uma dimensão institucional, também é necessária uma reflexão e uma resposta a esse nível. Pode ser um concílio, pode ser um sínodo, pode ser uma assembleia aberta aos leigos. Mas, na história da Igreja, uma grande crise nunca dispensou um grande momento de diálogo, que possa limpar, reconciliar e dar um novo sopro. E aí se falará decerto do celibato, da ordenação de mulheres e de toda a moral familiar, afectiva e sexual. Com tempo, sem pressão, sem automatismos simplistas nem etiologias de ocasião.
6. No imediato e sem hesitações, o Papa Francisco carece de todo o apoio contra a manobra oportunista em curso por banda daqueles que nunca defenderam uma Igreja aberta e transparente. Não se pode ter medo. Não se pode ter medo de enfrentar a verdade e cuidar dela. Não se pode ter medo dos que, em voo de abutre, querem instrumentalizar “politicamente” o sofrimento de tantas vítimas e o acumular de tantos erros. A Francisco e à Igreja, nesta hora difícil, resta o esteio do grito bíblico do Antigo e do Novo Testamento: “não tenhas medo!”, “não temais!”.
SIM e NÃO
SIM. Bispos portugueses. A carta enviada ao Papa Francisco, mostrando o apoio total e disponibilizando-se para adoptar todas as medidas contra os abusos vai na melhor das direcções.
NÃO. Governo italiano. A ameaça de suspender pagamentos à UE e a intenção de não cumprir as regras da zona euro levaram a uma baixa da perspectiva no rating. A Itália sofrerá; os outros também.