Estrangeiras detidas no aeroporto de Lisboa estão "mais expostas" a assédio
Brasileira diz ter sido assediada no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto. Camaratas masculinas e femininas ficam lado a lado. Provedoria de Justiça já recomendou separação por géneros.
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Quando Antónia (nome fictício), natural do Brasil, chegou ao aeroporto de Lisboa vinda de Fortaleza foi barrada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Ao olhar para o seu visto, o funcionário do SEF desconfiou e disse-lhe: “Vem como turista mas só tem 30% da hospedagem paga. Nos outros dias vai dormir na praia?”, conta ela ao PÚBLICO, numa esplanada em Lisboa, ainda nervosa com a situação.
Segundo diz, veio a convite de um cunhado, primeiro como turista para perceber se gostava do país – se gostasse, tentaria arranjar trabalho.
Levaram-na para uma sala onde a interrogaram durante "muito tempo". O cunhado foi contactado e terá dado uma versão diferente ao SEF. O "alerta" soou. Depois conduziram-na para aquilo a que chama "prisão” – o Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa.
Tirou os anéis, entregou as suas coisas pessoais. Recebeu um kit com lençóis descartáveis e uma pequena toalha, sabonete e champô em miniatura. Ficou sem aceso ao telemóvel ou a coisas básicas como a muda de roupa. A mala que tinha vindo no porão só seria entregue “semanas depois” e porque o “advogado ficou em cima”, acusa. Não aceitou regressar ao Brasil como sugerido pelo SEF.
Seria então alojada numa camarata para mulheres na ala de “inadmissíveis” – estrangeiros a quem é barrada a entrada em Portugal por várias razões, entre serem procurados pela justiça, não terem visto de entrada, existir suspeita sobre a autenticidade do passaporte.
Quem entra no CIT de Lisboa, um espaço com capacidade para albergar 58 pessoas, vê de um lado essa ala e, do outro, a ala dos requerentes de asilo. Ambas têm um pequeno pátio interior, para os detidos apanharem Sol e são praticamente iguais: passando um corredor, chega-se à sala de convívio onde a televisão está ligada e há mesas e cadeiras apenas. O espaço é pequeno. Logo a seguir estão os balneários e as camaratas femininas e masculinas com beliches para uma dezena de pessoas — camaratas que ficam quase porta a porta.
Sobretudo na ala do asilo há quem ali permaneça dois meses. Não há espaço algum para as famílias, por isso os casais quando chegam são separados - as crianças ficam normalmente a dormir com as mães e com as outras detidas, prática que tem sido criticada, nomeadamente pela Unicef e OIM.
Antónia ficou quase 20 dias na ala dos inadmissíveis e outros 40 na do asilo. Pediu protecção internacional, argumentando que corria risco de vida por causa das ligações de um familiar ao tráfico de droga. O período máximo para a detenção no CIT é de 60 dias; a seguir, o SEF tem que libertar a pessoa para aguardar decisão em liberdade.
Chorava a toda a hora. Não dormia. O dia-a-dia era tenso, segundo descreve. Pouco havia para fazer naquele espaço. Viu o dia clarear no corredor muitas vezes. “Fiquei muito assustada porque eram muitos homens de muitos lugares do mundo. Para tomar banho o David [um brasileiro de quem se tornou amiga] ficava na porta vigiando.”
Assédio sexual
O susto maior chegou depois: acusa de assédio sexual um segurança da empresa que faz a vigilância, a Prestibel. Descreve um assédio verbal, com insinuações de avanços físicos. Ter-lhe-á dito que ia "fazer a ronda ao quarto e dar um tratamento à tua (...)". Outro detido, David, testemunhou o acontecimento, garante ao PÚBLICO, referindo exactamente a mesma expressão usada por Antónia. Ela diz: "Alguém que devia zelar pela sua segurança não pode se comportar assim".
Antónia não fez queixa imediatamente, e só denunciou o episódio mais tarde, em finais de Julho. Deixou de ver o segurança. O caso está em investigação pelo Ministério Público, por isso o SEF diz que não o comenta. Já a empresa refere ao PÚBLICO que não tem conhecimento de um funcionário que tenha sido acusado de assédio e não esclarece se ainda se encontra ao serviço. Mas Antónia já foi notificada para prestar declarações ao Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa.
Queixa-se ainda de ter sido assediada por um brasileiro que estava detido. “Não esperava passar por tantas coisas sérias”, conta.
David recorda: "Para ela era muito difícil estar ali por ser mulher, não havia muitas", refere. "Ela ficava com medo de algum homem sair e ir para o quarto dela. Tinha homem que ficava ali mais de 40 dias preso, entende?"
No seu último relatório de 2017, o Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura, da Provedora de Justiça, referia, a propósito do CIT Lisboa, que deveriam ser garantidas medidas que afastassem totalmente o risco para a segurança das pessoas do género feminino em relação a violência e exploração sexual. Na Unidade Habitacional de Santo António, no Porto, por exemplo, as camaratas das mulheres e homens são em andares diferentes.
José Gaspar Schwalbach, advogado de “Antónia” e de outros detidos que tem de pagar uma taxa que é cobrada pela ANA para ver os seus clientes - escreveu à Provedoria de Justiça a denunciar situações que considera abusivas. Ao PÚBLICO sublinha que seria “importante rever a separação das alas por géneros" porque desta forma as mulheres “estão muito mais expostas a situações de perigo”.
Mas o SEF defende que são garantidas todas condições necessárias para uma permanência digna e humana no CIT. Lembra que está previsto um novo Centro de Acolhimento Temporário em Almoçageme, em Sintra, com obras a começarem em Setembro, e que este terá duas alas distintas em função do género e uma ala para famílias. Acrescenta ainda que a empresa de segurança privada é composta sempre por equipas mistas, para assegurar o tratamento igualitário dos utentes.
O SEF tem defendido que as pessoas não são detidas mas retidas no CIT. Porém, quem está no CIT de Lisboa (ou melhor, Espaço Equiparado a CIT) não tem liberdade de movimentos; não pode sair, não tem acesso ao seu telemóvel, tem apenas cinco minutos de chamadas quando entra, não pode consultar a Internet, precisa de autorização para aceder em períodos específicos à sua bagagem de porão.
A provedora critica estes aspectos e dá como exemplo o Porto, onde, pelo contrário, há um espaço exclusivo para famílias e uma sala de actividades para crianças, as alas femininas e masculinas estão separadas por andares, é permitida a comunicação usando o próprio telemóvel num horário específico e até o recurso a Internet.
“Aquilo é uma prisão, sim”, acusa Antónia sobre o CIT de Lisboa.
62,3% das recusas de entrada são a brasileiros
Portugal e Brasil assinaram um Tratado em que se dispensa de visto quem visitar o país por 90 dias com fins culturais, empresariais, jornalísticos ou turísticos. Mas, segundo o Relatório de Imigração Fronteiras e Asilo de 2017, a grande fatia das recusas de entrada em território nacional ocorreram no Aeroporto de Lisboa e a esmagadora maioria - cerca de 62,3% - foram a brasileiros.
O SEF justifica: as 1336 recusas representam apenas 0,1% das entradas totais de cidadãos daquele país. Acrescenta que os brasileiros são a principal comunidade estrangeira residente em Portugal, com mais de 85 mil, tendo aumentado 5,1% em relação a 2016.
Porém, havendo o tratado, o advogado José Gaspar questiona porque é que o SEF detém tantos brasileiros nos postos de fronteira. Diz ainda que o excesso de zelo justificado com "razões de segurança" provoca danos na vida de pessoas.
Um exemplo é o da também brasileira, Mariana Portela, 35 anos, detida no CIT de Lisboa entre 7 e 19 de Junho. Depois de ter tirado o mestrado em Comunicação e Cultura na Universidade de Lisboa, entre 2008 e 2009, ficou durante um período em Portugal em 2017, a trabalhar remotamente em recursos humanos para o Brasil.
Por "irresponsabilidade" que a própria reconhece deixou o prazo de permanência legal exceder oito meses. Quando 2018 arrancou voltou ao Brasil, fazendo escala em Zurique. Na fronteira da Suíça questionaram-na sobre o facto de ter passado esse prazo. Mas deixaram-na seguir, sem dizer mais nada: ninguém a informou de que teria de pagar uma coima ou que o seu nome iria ficar na lista do Sistema de Informação Schengen (SIS) onde podem ser colocadas as pessoas a quem é recusada a entrada por diversos motivos (como serem procuradas pela justiça). Essa notificação, segundo a lei, é obrigatória – o SEF reafirma-o ao PÚBLICO. “Se me tivessem dito eu teria resolvido a situação na embaixada da Suíça no Brasil”, comenta Mariana Portela.
Meses depois, a também escritora marcou viagem para Portugal. À entrada, foi barrada no aeroporto de Lisboa. “Fiquei quatro horas numa sala, pedindo a minha advogada, e eles não a chamaram. Deixaram-me lá essas quatro horas e depois mandaram-me para aquela prisão" — o CIT.
José Gaspar, também seu advogado, interpôs uma providência cautelar. Diz que o normal é, em casos de excesso de permanência, ser feita notificação para pagamento de multa. "Não faz qualquer sentido a medida de interdição. O SEF podia ter solicitado a remoção da medida de interdição, foi esse pedido que fizemos logo a seguir à detenção." O SEF responde que cumpriu a lei.
Contactaram um advogado na Suíça e, mais tarde, o nome de Mariana Portela foi removido da lista. Ela não tinha qualquer antecedente criminal. "Há falta de preocupação do SEF em analisar os casos concretos", lamenta José Gaspar.
Mariana Portela diz que por diversas vezes também sentiu medo e defende a separação das alas. A detenção levou-a a ficar com Stress Pós Traumático, está a ser acompanhada psicologicamente. Planeia escrever um livro sobre a sua experiência.