As mulheres por trás da queda da mais poderosa das máfias

Boas e más mães, avós que usam netas para chantagear filhas até à morte, homens que vêem as mulheres como submissas. A Itália da ’Ndrangheta no livro As Boas Mães. Lê-se como um romance, se esquecermos que cada palavra é real.

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Esta é uma história de mulheres. De mães. De filhas. Chama-se As Boas Mães. “Para as boas filhas”, escreveu o jornalista Alex Perry na dedicatória. Porque há uma filha que acaba o que a mãe começou em vida e outras se seguirão. Porque a mãe, “figura sagrada”, era, afinal, o caminho para quebrar uma “tirania misógina”, como percebeu a procuradora antimáfia Alessandra Cerreti.

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Esta é uma história de mulheres. De mães. De filhas. Chama-se As Boas Mães. “Para as boas filhas”, escreveu o jornalista Alex Perry na dedicatória. Porque há uma filha que acaba o que a mãe começou em vida e outras se seguirão. Porque a mãe, “figura sagrada”, era, afinal, o caminho para quebrar uma “tirania misógina”, como percebeu a procuradora antimáfia Alessandra Cerreti.

“As mulheres não importam”, costumavam dizer os colegas de Alessandra. “Os homens italianos subestimam todas as mulheres. É um verdadeiro problema”, comentou a procuradora a Perry (os dois conversaram oito horas ao longo de um ano).

Esta é a história da ’Ndrangheta, a máfia da Calábria, a ponta da bota apontada à Sicília, a máfia que se tornou (quase) impenetrável por fazer da “família a base do seu poder”. Que cresceu incógnita durante 150 anos até se tornar numa “organização criminosa quase tão perfeita quanto alguma vez eles [os procuradores] viriam a encontrar”, com presença em 120 países e lucros superiores aos da Microsoft. Isto enquanto a Cosa Nostra (Sicília) e a Camorra (Nápoles) inspiravam filmes de Hollywood e sacríficos de juízes de verdade nas guerras dos anos 1980 e 1990.

As Boas Mães é tragédia e absolvição, sangue e coragem. É mito: ao nascer enquanto a Itália era unificada, na segunda metade do século XIX, e no Sul do país, onde ainda hoje há quem se sinta ocupado e sempre ressentido em relação no Norte, rico (onde muitos olham para o Sul como o parente pobre que é preciso ajudar), os mafiosos calabreses (como os sicilianos) apresentam-se como valentes e honrados, a alternativa ao Estado ausente.

Rufias transformados em herdeiros de cavaleiros andantes medievais, uma Sociedade Honrada baseada na defesa mútua, uma irmandade ferida que acalentara um sentimento de revolta justa e uma lealdade à prova de bala. Rituais supostamente antigos ditavam que os bebés filhos de um chefe fossem postos à prova logo depois de nascerem: “Um rapaz seria deitado a espernear e a gritar numa cama, com uma chave junto à mão esquerda e uma faca junto à direita, a representar o Estado e a máfia. O primeiro dever de uma mãe da ’Ndrangheta era garantir que, com toques cuidadosos, o filho agarrava na faca e selava o seu destino”.

“A ’Ndrangheta não tinha tradição. Tiveram de inventar uma”, escreveu um dos principais historiadores italianos da máfia, Enzo Ciconte, citado por Alex Perry. A verdade é que a máfia nasceu na prisão, onde criminosos comuns contactaram com revolucionários burgueses, muitos deles maçons. Cá fora, apropriações de terras, exigência de dinheiro por protecção a cada negócio do bairro, subornos às autoridades; aldeias, vilas, lugarejos de montanha longe de tudo. “Uma terra à parte”, com “vales só acessíveis a partir do mar”, “encostas íngremes”, “pinhais cerrados”, famílias que ali viveram séculos sem ninguém para as defender.

Para ajudar, um idioma arcaico – o grecânico, herdado da Idade Média, quando a Calábria fazia parte do Império Bizantino. Um nome: ’Ndrangheta, do grego andraganthateai, “sociedade de homens de honra e valor”. Uma farsa, bem montada. O dinheiro por protecção, pizzo, já não só da pizzaria mas também da protecção de bens, propriedades, perseguição de bandidos, arbitragens de disputas.

“Um objectivo central de todas as máfias era criar um consenso em torno do poder. Sempre que surgia a questão do poder – político, económico, social, divino – a resposta tinha de ser a máfia”, descreve Alex Perry. “Era uma ventura peculiar das máfias italianas que as circunstâncias conspirassem para enxertar o seu empreendimento na mais duradoura das estruturas de poder da Itália meridional: a família.” E assim se fundou uma hierarquia e um secretismo assente em relações de parentesco. Com o tempo, uma hierarquia mais complexa, mas sempre baseada na “lealdade ao sangue e à terra pátria”. A omertà.

Uma princesa

Lea Garofolo nasceu na máfia, na família. Era uma princesa, uma Garofolo de Pagliarelle, da aristocracia da ’Ndrangheta da costa oriental. Cresceu para se tornar numa bela mulher, uma silhueta esguia, maçãs do rosto definidas, cabelo preto e forte, elegância natural.

O pai foi morto por três membros de um clã rival quando ela tinha oito meses, na véspera da passagem de ano de 1974. Ficou-lhe a mãe, o irmão mais velho, Floriano, a irmã, Marisa. Cresceu ao ritmo de mortes de familiares, vinganças pela vendeta lançada pelos Garofolo. Aos nove anos, escondeu uma pistola a pedido de Floriano. A mãe era uma excepção na ’Ndrangheta, casara nela mas não deixara de trabalhar e ensinou-lhe que “educação era liberdade e sustentar a família era o que conferia dignidade à mulher”.

De alguma forma, Lea sempre viu “para lá da mentira”, sabendo que tinha de abafar a raiva pela morte do pai e fingir, todos os dias. Para ela, “a ’Ndrangheta era um culto da morte e Lea era uma mulher que adorava a vida; a ’Ndrangheta determina o seu destino por ti, Lea queria planear o seu próprio destino”, descreve Vincenza Rando (Enza), a primeira advogada de Lea. “Não se vive. Apenas se sobrevive de alguma maneira. Sonha-se com alguma coisa – qualquer coisa – porque não há nada pior do que essa, vida”, diria Lea aos carabinieri, em 2002.

Parecia ter tudo para fugir ao seu destino. E no entanto... “É a tragédia destas mulheres. Mesmo ela, que viveu sempre com consciência do certo e do errado, do que queria. Apaixonou-se a pensar que assim fugia. Carlo parece amá-la. Denise acredita nisso [como Lea acreditara, em adolescente, tanto, até descobrir que ele estava com ela para subir na hierarquia, com a bênção do irmão]. E ela cai na armadilha. Há coisa mais trágica? No nosso tempo. Isto ainda acontece. Se pensarmos, é incrível”, diz Perry em Lisboa, à conversa quase no fim de umas férias de Verão com base em Sintra.

Uma peça de teatro

Britânico, jornalista de investigação, Perry foi correspondente ou enviado a quase meio mundo. E nunca tinha ouvido falar da ’Ndrangheta até dar consigo na Sicília, a trabalhar numa história sobre refugiados e imigrantes em 2015, quando percebeu que a máfia calabresa dividia com outras organizações a gestão dos centros onde ficavam alguns dos que ali desembarcavam. “Só isso foi uma revelação. Não tinha noção que a máfia italiana tivesse esse nível de penetração”, conta.

Quis saber mais. “Perguntei à jornalista italiana que trabalhava comigo se me ajudaria a perceber melhor como funcionava a ’Ndrangheta. Ela aceitou, em troca de 150 dólares e do meu compromisso em assistir a uma peça de teatro em Roma.”

E foi assim que Perry deu consigo num espaço algo degradado. A peça era um monólogo, uma mulher a contar a sua vida, não percebeu muito mais. No fim, a jornalista pediu-lhe que subisse ao palco e dessa a sua opinião sobre a peça e a ’Ndrangheta. “Uma vergonha. Não tinha percebido nada e ainda não sabia quase nada”.

Em palco tinha acabado de assistir à história de Maria Concetta Cacciola, Concetta ou ’Cetta, uma das “boas mães”, com um fim absolutamente trágico, como Lea e ao contrário de Giuseppina Pesce, a sobrevivente entre as três mulheres que decidiram denunciar a ’Ndrangheta, quebrar a omertà, e ocupam grande parte deste livro. E foi assim que Perry decidiu ficar em Itália. “Era tudo absolutamente fascinante e irreal. Na Europa, no século XXI, tão desconhecido. Os italianos tinham acabado de acordar para esta realidade.”

Concetta, Giuseppina e Lea. Três das “boas mães” cujas vidas ficamos a conhecer com o pormenor possível (e é muito o detalhe a que Perry chega) – antes também as houve, nenhuma com a importância de Lea, a primeira destas três, a primeira princesa da ’Ndrangheta a denunciá-la – depois haverá mais, sempre mais.

Lea mostra que é possível, Giuseppina que se pode fazê-lo e sobreviver, salvando os filhos de caminho. Há uma quarta “boa mãe”, sem filhos, Alessandra, que acaba por desenvolver uma relação maternal com Giuseppina. “É verdade. Ela emprestou-me o diário dela. E quando li que sentia uma ligação quase umbilical a Giuseppina… Pensei, ‘olha, a Alessandra com sentimentos maternos, afinal, ela também é capaz”, diz Perry.

Porque Alessandra fez as suas escolhas. Ser procuradora antimáfia significa viver sob segurança permanente, numa espécie de bunker hiperprotegido, em Milão, onde fez os seus estudos e começa a sua carreira, apesar de ter nascido no Sul (no porto siciliano de Messina), onde conseguirá ser colocada para as primeiras guerras que o Estado trava e ganha à ’Ndrangheta.

Uma mulher dura

Alessandra, hoje com 50 anos, sempre soube que não teria filhos. Alessandra tem as suas particularidades: quando a professora pediu à turma de oito anos que fizessem uma redacção sobre o que queriam ser quando crescessem, enquanto as colegas deram conta de sonhos de princesas ou astronautas, ela deixou claro que não iria para longe. “Quero ser procuradora de acusação à máfia”, escreveu. “Quero pôr bandidos atrás das grades.”

“A questão de não ter filhos não parece ser um sacrifício. Ela fala disso como uma consequência natural, sem nenhum drama. É uma mulher dura”, diz Perry. “Sim, sentir-se a ganhar afeição a Giuseppina não terá sido fácil. Ela estabelecera muito bem as regras, as defesas, a ideia de que não podia sentir emoções. Penso que ainda gere essas contradições. Mas elas continuam próximas. Telefonavam-se quase todos os dias, julgo que ainda acontece.”

O livro de Perry começa com os últimos dias da vida de Lea, finais de Novembro de 2009, em Milão. E acaba com o seu funeral, na mesma cidade, a 19 de Outubro de 2013, depois de terem sido encontrados os seus restos mortais, quando a filha, Denise, entra definitivamente no programa de protecção de testemunhas onde passara anos na companhia da mãe.

“Obrigada por tudo o que fizeste por mim”, diz Denise, no funeral, então com 21 anos. “Obrigada por me dares uma vida melhor. Tudo o que aconteceu, tudo o que fizeste, sei agora que o fizeste por mim e nunca deixarei de te agradecer.”

Denise Cosco (do pai, Carlo Cosco) nunca mostra o rosto em público. Nem no funeral da mãe, presenciado por uma pequena multidão. Fala através de um altifalante sem que os presentes, muitos dos quais derramam lágrimas ao ouvi-la, alguma vez a vejam. Há imagens dessa despedida emocionada no YouTube. A voz de Denise cada vez mais embargada. “Ciao, Mama”, despede-se, entre bandeiras com o rosto de Lea e a frase “Oiço, vejo falo”, um lema que se tornou omnipresente nas concentrações contra a máfia, a par das fotos, de Lea, principalmente, mas também de Concetta ou Giuseppina.

A vida de Lea é a que os italianos conhecem melhor. Apesar de ninguém para além dos próximos, de alguns polícias e procuradores terem ouvido falar dela quando morreu. Várias fotografias, de Lea e de Lea com a filha pequena, saíram entretanto em jornais, e a sua história, iniciada na Calábria e brutalmente interrompida em Milão, haveria de ser contada até que Lea se tornasse numa das poucas histórias capazes de unir a Itália.

Um filme, uma série, peças de teatro, livros, reportagens, cartazes com o seu rosto em marchas e concentrações; parques, pontes e praças com o seu nome. Monumentos: em Petilia Policastro (Crotone, Calábria) surgiu uma estátua que representava uma bola a fender um rochedo em dois. A localidade, disse o presidente da câmara ao inaugurá-lo, seria para sempre um farol para “as mulheres de coragem” em toda a Itália.

Ensinar a coragem

Autocarros alugados para levarem a Milão quem quisesse juntar-se ao luto vindo de Petilia e Pagliarelle, chegaram vazios. Mas centenas de calabreses estavam entre a multidão que trouxe flores e bandeiras com o rosto de Lea, num momento em que a Itália pareceu finalmente unida, toda a Itália junta, nas ruas da cidade.

Do próprio funeral saíram mulheres prontas a denunciar o que sabiam e a libertar-se: Enza reconheceu uma mulher da ’Ndrangheta que seguiu da cerimónia para uma esquadra. “Ela disse ‘Lea ensinou-se a ser corajosa. Ela ensinou-me a ter coragem’”, disse-lhe esta mulher, haveria de contar Enza a Perry.

2009 a 2013. Estes são os anos em que a Itália e o mundo se apercebem do poder da ’Ndrangheta, do tráfico de armas e de droga, da compra de activos financeiros, como dívida, a outras organizações criminosas por todo o mundo. Os anos em que sem conseguirem nunca derrubar a hidra, os procuradores que se juntaram na Calábria conseguem abalá-la. Centenas e centenas de detenções, milhares de empresas e propriedades apreendidas, milhões e milhões de euros.

Lea foge, denuncia o marido, Carlo Cosco, uma e outra vez. Quando engravida decide que vai dar o bebé para adopção e fugir para sempre; Denise nasce e ela apaixona-se. A primeira fuga é em 1996. Passa anos à espera que o seu testemunho seja avaliado, até o Estado decidir se merece entrar no programa de protecção, é encontrada e volta a fugir, e de novo isso se repete sem que o Estado nunca perceba como pode usar as informações de uma princesa da ’Ndrangheta.

Há muito que escapa ao Estado. Declaram-na segura quando o irmão é morto, por exemplo, sem nunca perceberem que ele foi morto por não a matar. Lea volta para o marido sem voltar, aceita fazer as pazes, pela filha, volta a fugir quando se sente em perigo. Lea e Denise vivem como num jogo, mudam de casa, de cidade, de nomes, são como duas irmãs a viver uma vida só delas.

Até que, em 2009, estava a filha a pensar onde faria a universidade, contando com a ajuda do pai, e Lea concorda com uma viagem a três a Milão, elas num hotel, ele no seu apartamento ou em trabalho, no prédio a partir de onde gere os negócios da ’Ndrangheta na cidade. Dias de passeios e jantares, muitos fingimentos. E Lea, que pedira a Denise “nunca te afastes de mim, és a minha salvação”, acaba por amolecer e aceitar um jantar a dois, ela e Carlo, na noite em que deverão apanhar o comboio rumo ao Sul, ela e Denise.

Carlo convence a filha a jantar com familiares, ‘os teus tios e os teus primos têm saudades tuas”, diz-lhe. E quando ela se apercebe que só metade da família está por ali e que quem está nem lhe dá atenção, que há um entra e sai suspeito, quando ela tenta telefonar à mãe, pelas 21h, 21h30, já é tarde, o telefone que nunca era desligado por segurança já não toca.

Uma falha

Alessandra chega à Calábria já conhecendo o testemunho de Lea e com a convicção que este é o caminho: as mães, a família que a ’Ndrangheta usou e perverteu, as meninas prometidas em casamento, as mulheres que nela (só) parecem pouco contra e pouco saber, são a base da besta. A intolerância violenta da ’Ndrangheta face às suas mulheres não era somente “uma tragédia”. Era “uma falha e podia tornar-se numa crise existencial”. “Libertar-lhes as mulheres é a maneira de derrubar a ’Ndrangheta”, acredita Alessandra.

“Mais do que tudo, foi a história de Lea que comoveu a Itália. Se Concetta representava a tragédia e Giuseppina Pesce encarnava a resiliência, Lea era ambas as coisas. Ali estava uma mulher nascida na máfia que tentara escapar durante toda a sua vida. Ainda mais encurralada pelo casamento, encontrou a força para lutar no amor pela filha, antes de ser abandonada pelo Estado e levada a cair numa armadilha por um marido que fingiu ter-se apaixonado novamente por ela”, escreve Perry.

“Era um melodrama épico com inflexões e reviravoltas tão inacreditáveis que as pessoas pareciam comparecer nas comemorações da vida dela, que se realizavam um pouco por todo o país a partir de 2013, só para se assegurarem que o tinham ouvido era verdade.”

Perry não oferece nenhum exclusivo no seu livro As Boas Mães – A história verdadeira das mulheres que enfrentaram a máfia mais poderosa do mundo. “Gostava de dizer que passei meses numa floresta a escutar conversar e a vigiar mafiosos. Não é verdade. Limitei-me a convidar procuradores para almoçar e a dar-lhes uma pen drive que eles me devolviam cheia de documentos”, diz, a rir. Não foi só isso, claro, mas percebe-se. Os procuradores em Itália guardam registos de todas as entrevistas com suspeitos ou denunciantes e podem divulgá-los assim que os processos avançam. Perry falou com eles e teve acesso a milhares e milhares de páginas: entrevistas, testemunhos, escutas.

O que ele faz, magistralmente, é usar toda essa informação para nos contar uma história com sentido. “Se o que fiz tem algum valor é o de juntar muita informação dispersa encadeando-a e fazendo o retrato possível destas mulheres, da ’Ndrangheta e do combate que a Justiça travou.” É precisamente isso que o livro faz. E não é nada pouco. É tanto que levou dois anos a conseguir. A ideia inicial era um artigo que “por sorte ninguém comprou”. Cresceu para um livro acabado de publicar no Reino Unido e em Portugal.

E em Itália? “Não há interessados. Não percebem o que um 'não italiano' pode ter para dizer sobre estes temas, para acrescentar ao que que os italianos já sabem”, diz Perry. Aliás, esse preconceito esteve sempre presente na investigação. “A própria Alessandra, julgo que teve sempre muito medo do que sairia dali. Principalmente quando soube que no fim haveria um livro.”

Que o autor saiba, Alessandra (que Perry aprendeu a respeitar e a admirar, como se torna óbvio na conversa com o P2) ainda não terá lido As Boas Mães. “Devia enviar-lhe uma cópia, não era?” Era. Percebe-se que se há opinião que conta é esta, a de alguém com quem Perry deixou a conversa por terminar (“esteve sempre disponível, mas depois de vender os direitos da sua história para Hollywood não apareceu no último encontro”) e cuja “exigência e crivo” parecem impossíveis de satisfazer.

Fugas e determinação

Concetta hesita demasiado, foge de casa, volta para casa, foge de casa e às tantas regressa sabendo que será morta mas, sem conseguir estar longe dos filhos, acreditando que tem um ano, ano e meio de vida. Não tem. Quando diz à mãe que vai voltar a fugir e reafirmar tudo o que disse às autoridades traça o seu destino. Polícias e procuradores como Alessandra esperam em vão por um telefonema para a ir buscar a casa dos pais, a ela e aos filhos.

O telefone nunca toca e Concetta acaba no banco de trás de um carro a caminho do hospital. Já está morta. Bebeu uma tal quantidade de ácido que ninguém conseguiria ingerir por vontade própria, tal seria o sofrimento.

Giuseppina também avança e recua. É presa, quer falar, depois recua, a família faz com que publique um desmentido num jornal da Calábria, a mãe usa os seus três filhos (tantos como os de Concetta) para a chantagear. Telefones que não deveriam entrar na prisão fazem o seu caminho para servirem um propósito claro. Mais tarde, Alessandra e outros procuradores ouvirão estas conversas. Como as da mãe de Giuseppina com outros familiares – diálogos que darão a ouvir a Giuseppina, derradeira confirmação que está a ser enganada.

Há um momento em que Giuseppina está prestes a sair do programa de testemunhas e Alessandra sabe que ficará à mercê da família. A procuradora quase enlouquece. Giuseppina fugiu-lhe, recusou assinar tudo o que denunciou. Mas quer salvá-la. Quando sabe que ela saiu para um último passeio com o homem por quem entretanto se apaixonou, compreende que tem ali uma oportunidade: ao afastar-se demasiado da casa de protecção viola as regras do seu estatuto, no último dia em que é obrigada a cumpri-las.

Alessandra fala com o comandante de polícia da zona, quer que ele feche estradas inteiras para a deter. Ele recusa, mas põe polícias na estrada à procura do carro com o casal. Às tantas, Alessandra já está ao telefone com os agentes espalhados pelo caminho, grita-lhes, enervada, descreve uma e outra vez a mulher que devem procurar. Finalmente Giuseppina é detida, a tempo.

É na prisão que Alessandra lhe dará tempo para pensar. Muito tempo. E Giuseppina acabará por encontrar a clareza de espírito necessária. A morte de Concetta, de quem fora amiga, ajuda. Subitamente não restam dúvidas. Só se salvará, a ela e aos filhos, se virar completamente as costas à família. Se os enviar a todos para a prisão por muitos anos. É isso que faz, 64 membros da sub-organização da ’Ndrangheta Pesce. Testemunha ainda no caso de Concetta. E vive.

Uma sinfonia da libertação

O pai de Concetta, Michelle Cacciola, ao saber da traição da filha, num episódio gravado: “Aquela merdosa desprezível!”, “Trabalhei 20 anos para ela!”, “Eles estão à espera que uma mulher me possa desgraçar. Mas que pode ela saber a meu respeito? Ela não sabe nada. O que pode uma mulher saber na minha casa? Acham que eu falei à minha filha no raio do meu negócio? Ela não sabe nada!”.

Primeiro dia do julgamento do clã Pesce: “já sabiam que estavam a ser julgados por uma procuradora com base no testemunho de uma mulher”. Por alguma razão, no caminho para a sala do tribunal os réus depararam-se com uma proporção invulgar de mulheres entre funcionários, jornalistas, polícias, advogados… Quando “os juízes entraram, um presidente e dois assistentes, os ’ndranghetisti ficaram espantados ao ver mais três mulheres”. E gritaram. “Não! Não! Aquilo não!”

“Uma sinfonia da libertação das mulheres”, diria Alessandra, a recordar o momento a Perry.

“Giuseppina sabe que o que fez é mais uma sentença de morte. A traição dela tinha de ser castigada com a morte e teria de ser o irmão, alguém do mesmo sangue, a matá-la para restabelecer a honra da família. E um dia ele sairá da prisão”, diz Alessandra. Mas Giuseppina nunca mais voltou a duvidar de si mesma. “Para Giuseppina, o que ela fez foi um acto de amor para com os filhos.” Escolheu a sua família. “Ela está óptima. Na verdade, penso que está feliz.”

Denise libertou-se ao decidir testemunhar contra os assassinos da mãe. O pai, tios, mas também o jovem por quem entretanto se apaixonara, Carmine. Sim, Denise, que sempre soube que a mãe fora morta naquela noite (e que não fugira para a Austrália, como dizia Carlo) e decidiu fingir para não ser ela própria morta pelo pai, acaba por se apaixonar por um dos assassinos da mãe. Mas sobrevive. Ao contrário de Lea, está sozinha mas não está. A multidão no funeral. As cartas de admiração e agradecimento. As concentrações contra a máfia.

“Oiço, vejo, falo”, a frase nas T-shirts com o rosto de Lea, a faixa sobre o caixão. No elogio fúnebre, Don Luigi disse que Lea não tinha mais que se preocupar. “Denise tem agora uma família com milhares de membros para cuidar dela.”

As detenções continuam, no início deste ano dezenas de pessoas foram presas com base nos testemunhos de Lea. E ainda não pararam de aparecer mais Leas.