Crónica da violência na Colômbia
Inacabada e póstuma, uma crónica da violência na Colômbia. Mesmo em registo póstumo e fragmentado, Carlos Fuentes é romancista de raça.
O repertório de obras publicadas após a morte dos respectivos autores é tão vasto e variado que não nos faltaria material se quiséssemos escrever uma história da literatura póstuma. Prescindindo do caso paradigmático e muito conhecido da obra de Kafka, bastará lembrar que Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, e Hadji Murat, de Tolstoi, duas das minhas novelas predilectas, foram publicadas postumamente. Basicamente (e estamos tratando aqui apenas de ficção, para simplificar, pondo de lado compilações de cartas, diários, dispersos, etc.), há dois tipos de livros póstumos: aqueles dados como concluídos e prontos para publicação pelo autor à data da sua morte e aqueles deixados inacabados (e, por vezes, com explícita interdição do seu uso póstumo).
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O repertório de obras publicadas após a morte dos respectivos autores é tão vasto e variado que não nos faltaria material se quiséssemos escrever uma história da literatura póstuma. Prescindindo do caso paradigmático e muito conhecido da obra de Kafka, bastará lembrar que Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, e Hadji Murat, de Tolstoi, duas das minhas novelas predilectas, foram publicadas postumamente. Basicamente (e estamos tratando aqui apenas de ficção, para simplificar, pondo de lado compilações de cartas, diários, dispersos, etc.), há dois tipos de livros póstumos: aqueles dados como concluídos e prontos para publicação pelo autor à data da sua morte e aqueles deixados inacabados (e, por vezes, com explícita interdição do seu uso póstumo).
Aquiles ou O Guerrilheiro e o Assassino é a segunda obra de ficção de Carlos Fuentes (1928-2012) publicada postumamente e pertence à categoria dos livros, clara e formalmente, inacabados (ao contrário da primeira, Federico en su Balcón, saída no ano da morte do escritor). O autor mexicano passou os últimos vinte anos da sua vida às voltas com a escrita deste livro, acabando por legar duas versões manuscritas não revistas e notas, material que seria editado por Julio Ortega e publicado, originalmente, em 2016. No prólogo, cujo título resume bem a ambivalência genética da obra — “Aquiles, entre a crónica e a ficção” —, Ortega detalha a evolução do programa e das dúvidas de Fuentes e justifica as suas próprias opções ao “juntar, interpolar, transcrever e misturar” secções dos manuscritos: “Um quebra-cabeças sem modelo para montar sugere que Fuentes rejeitou que os seus capítulos formassem um quadro reconhecível e identificável. No fim de contas, não chegou a ler, de lápis na mão, o manuscrito deste livro”. Talvez devamos, por isso, concordar cautelosamente com Ortega quando diz que “na juventude, Fuentes escreveu a sua obra mais formal, histórica e madura para poder escrever, em adulto, a sua obra mais exploratória, livre e juvenil”.
Fuentes planeava fazer deste livro o terceiro tomo de um tríptico romanesco que faria a “crónica” do seu tempo, dando “testemunho de acontecimentos contemporâneos que [o] tocaram de perto” e misturando “um pouco de confissão, um pouco de jornalismo”. O primeiro, focando as “ilusões e desilusões dos anos 60”, estava escrito e publicado (1994): Diana ou A Caçadora Solitária (em Portugal saiu na Dom Quixote no ano seguinte). Do segundo, que trataria do Chile de Pinochet, só ficou escrito o título: Prometeo o El Precio de la Libertad. Quanto a Aquiles, falaria da relação do escritor com a Colômbia, e foi espoletado pelo assassinato, em Abril de 1990, de Carlos Pizarro (1951-1990), um dos fundadores do grupo guerrilheiro M-19, que depusera as armas para se candidatar à presidência da República colombiana. É clara a ambição — que não é, aliás, exclusiva de Fuentes, nem sequer dos seus companheiros do famoso boom — continental, transnacional, desta literatura latino-americana cuja escala simbólica só os moldes mitológicos clássicos parecem capazes de conter.
Começando (e acabando) com a execução de Pizarro, o presente livro não é apenas a crónica de mais uma morte anunciada (hélas!). No segundo capítulo, o autor, interrogando-se sobre se, “como mexicano […] teria direito de falar da Colômbia, de cantar a cólera do Aquiles colombiano”, afirma um objectivo: “Mais do que o seu destino, interessava-me o seu itinerário. Mais do que a sua ideologia, interessava-me a sua viagem. Da família à guerrilha, da guerrilha à política e da política à morte. […] Este Aquiles foi, também, Ulisses.” O relato biográfico factual não basta. Só a literatura é eficaz. A imaginação. Daí que os companheiros de Pizarro nesta “Ilíada de pé-descalço” se chamem também Diomedes, Castor, Pelaio. Aquiles é ainda, embora em menor grau, a crónica de um assassino engendrado pela “economia da violência” colombiana que remonta, pelo menos, ao assassinato do político liberal Eliécer Gaitán em 1948. Afirma Fuentes que os dois partidos políticos que alternam no comando da República desde a sua fundação formam “a dúplice oligarquia colombiana, duas pessoas diferentes, liberal e conservadora, e um só Deus verdadeiro, o Poder”. E a corrupção: “[…] a única diferença entre eles é que os liberais vão à missa das sete e os conservadores à missa das oito”. O escritor mexicano tenta perceber também o percurso do sicário adolescente saído de um bairro de lata para executar Pizarro, dentro de um avião que acabara de descolar de Bogotá, a capital “estendida entre montanhas wagnerianas e savanas verdes”. Há igualmente segmentos de pura rememoração pessoal, ou de ensaio de indagação histórica, política e social das Américas Latinas (Brasil incluído) e, em particular, da Colômbia. Enfim, intrigou-nos um pouco a expressão “língua de madeira” encontrada na página 77, mas recomenda-se a leitura deste Aquiles. Mesmo em registo póstumo e fragmentado, Carlos Fuentes é “romancista de raça”, como lhe chama Ortega.