Há 85 quilómetros de arquivos aos pés de Tolentino Mendonça
Arquivo e Biblioteca do Vaticano são pela primeira vez dirigidos por um português, mas poucos investigadores nacionais utilizam aqueles fundos para as suas pesquisas
Os milhares de visitantes dos Museus Vaticanos que todos os dias passam no Cortile della Pigna, o pátio interior que liga os espaços expositivos, não imaginam o que está sob os seus pés: 85 quilómetros de estantes, com milhões de documentos (dos quais 30 mil pergaminhos), provenientes pelo menos de 650 fundos diferentes e dos arquivos dos diferentes papados.
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Os milhares de visitantes dos Museus Vaticanos que todos os dias passam no Cortile della Pigna, o pátio interior que liga os espaços expositivos, não imaginam o que está sob os seus pés: 85 quilómetros de estantes, com milhões de documentos (dos quais 30 mil pergaminhos), provenientes pelo menos de 650 fundos diferentes e dos arquivos dos diferentes papados.
Será esse mundo – mais os milhares de volumes da Biblioteca Apostólica – que, a partir deste sábado, 1 de Setembro, estará sob a responsabilidade do novo arcebispo português, D. José Tolentino Mendonça, enquanto arquivista e bibliotecário da Igreja Católica. Não haverá cerimónia solene de posse e, por isso, o arcebispo Tolentino fará apenas uma breve saudação aos 95 funcionários da Biblioteca Apostólica Vaticana (BAV) e aos 57 que trabalham no Arquivo Secreto do Vaticano (ASV).
É a primeira vez que um português dirige estas instituições. Tolentino Mendonça, 52 anos, que sucede ao cardeal francês Jean-Louis Bruguès, era até Junho vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, tinha sido nomeado este ano director da sua Faculdade de Teologia, era capelão da Capela do Rato, em Lisboa, e continuava a escrever poesia e ensaios bíblicos ou espirituais. “Estava muito feliz e completamente identificado com o trabalho que desenvolvia em Portugal”, diz na entrevista que deu ao PÚBLICO esta semana, a propósito das novas funções.
A “culpa” desta situação é do retiro que orientou para o Papa e a Cúria Romana, em Fevereiro, sobre “o elogio da sede”. Francisco gostou muito de ouvir falar o padre português, autor de A Construção de Jesus, entretanto reeditado em 2015, com o texto da sua tese em exegese bíblica. Entre os títulos das suas últimas obras estão também Teoria da Fronteira (o último livro de poesia, da Assírio & Alvim), A Mística do Instante (Paulinas) e O Elogio da Sede (Quetzal), que recolhe as intervenções do retiro.
Tolentino Mendonça será o 48º bibliotecário e o 41º arquivista, numa lista que inclui nomes sonantes da história católica. Mas desfaça-se, para já, uma ambiguidade: secreto vem do latim secretum, que significa privado. Trata-se, apenas, de dizer que aquele é (começou por ser) o arquivo privado do Papa, criado oficialmente a 31 de Janeiro de 1612, por Paulo V.
No ASV, os mais antigos documentos datam do século VIII. Alguns dos mais importantes estiveram na exposição Lux in arcana – L’Archivio Segreto Vaticano si rivela (Luz sobre os enigmas – o Arquivo Secreto Vaticano revela-se), patente em Roma, em 2012, por ocasião dos 400 anos da instituição, e que permitiu vê-los em público, pela primeira vez na história.
60 metros para extinguir os Templários
Aí se podia ver, entre uma centena de raros documentos históricos, o rolo com o processo dos Templários, em 60 metros de pergaminho que reuniam as confissões de 231 cavaleiros do Templo e que permitira extinguir a Ordem do Templo. Outro dos documentos famosos é o pergaminho em que Galileu Galilei aceita a sentença que o cardeal Roberto Bellarmino, do Santo Ofício, pronunciara contra ele a 22 de Junho de 1633, no convento de Santa Maria Sopra Minerva, em Roma. Se tivesse vivido mais 100 anos, teria visto a vitória das suas teses científicas, dizia, em 2012, o bispo e prefeito (número dois do ASV), Sergio Pagano, numa reportagem da SIC sobre os arquivos – a primeira vez que um meio de comunicação português entrou no ASV e que, aliás, receberia um prémio de jornalismo em Itália.
O édito do imperador Carlos V contra Marinho Lutero, monge alemão que iniciaria o movimento protestante e a Reforma; os 85 selos de deputados ingleses a apoiar os amores do rei Henrique VIII; uma carta de 10 de Junho de 1250 (648 no calendário muçulmano) em que um califa de Marrocos pedia, com delicada caligrafia árabe, o apoio do Papa; a carta de Lucrécia Borja ao seu pai, o Papa Alexandre VI, alertando-o para a chegada do exército francês a Roma, também de um 10 de Junho, mas em 1494; a carta da última imperatriz Ming, da China, escrita em seda, em 1650, no “11.º dia da 10.ª lua do quarto ano do reino do imperador Yongli”; o mais antigo documento em língua mongol (1279); uma bula do Papa Clemente VIII em língua quechua (1603); a aprovação da regra de São Francisco de Assis (1223); a absolvição do padre António Vieira das acusações feitas pela Inquisição; ou o processo de canonização da Rainha Santa Isabel – são apenas uma infinitésima parte do espólio que José Tolentino Mendonça terá, a partir de hoje, sob a sua responsabilidade.
Aberto à consulta até 1939, ao final do pontificado de Pio XI, o ASV prepara há anos a abertura dos documentos do pontificado de Pio XII – o que ajudará a lançar luz sobre o papel do Papa Pacelli na II Guerra Mundial. Há, no entanto, fundos das últimas décadas que já estão disponíveis para consulta.
Diferente do Arquivo, a Biblioteca assume-se com “uma amplitude humanista e a ambição de representar o melhor do conhecimento e das artes”, diz o novo bibliotecário. Já no final do século IV há notícias de um Scrinium, com as funções de biblioteca e arquivo. Em 784, com Adriano I, é criada a figura do bibliotecário. Mas, no século XIII, a biblioteca e o arquivo dispersam-se, por razões não esclarecidas, por Perugia, Assis, Avinhão... Só com o Papa João XXII (1316-1334) se daria início à constituição de uma nova biblioteca. O primeiro bibliotecário desta nova fase seria Marcello Cervini, em 1501.
Ambas as instituições, Arquivo e Biblioteca, estão, desde 1881, abertas aos investigadores, com as regras de consulta próprias das grandes instituições do género. Cerca de dois mil investigadores de todo o mundo passam por ali à procura de documentos para os seus trabalhos. Mas são poucos os portugueses: uma dezena por ano, em média. Pode ser que o facto de um português estar à frente das duas instituições aumente o interesses por elas...