Nunca as canções de Anna Calvi tinham soado tanto à sua vida

Após uma ausência de cinco anos, a cantora e compositora inglesa regressa com Hunter, álbum em que quer passar de presa a caçadora – para ir atrás de ser quem quiser dentro do seu corpo. Em Outubro, apresenta-se em Porto e Lisboa.

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Para chegar até aqui acabaria por se revelar fundamental ter-se apaixonado e seguido a sua namorada para França maisie_cousins

A história não é nova, já foi contada mais do que um par de vezes, mas ganha toda uma nova luz agora que Anna Calvi chega ao seu terceiro álbum – Hunter. Tendo começado por estudar violino e investido numa formação clássica, virando-se depois para as possibilidades da guitarra – que lhe permitiam inventar o seu reportório em vez de se tornar uma intérprete da música sonhada por outros –, Anna Calvi só já depois dos 23 anos decidiu que queria educar a voz e usá-la para transportar palavras, juntando mais uma camada de expressão num desejo crescente de que a sua música representasse ideias e não apenas sucessões bem arquitectadas de notas. Sabia que tinha muito para dizer e não queria perder-se em ambiguidades. “Como sou muito obsessiva”, recorda ao Ípsilon, “fiquei obcecada com a ideia de como devia ser libertador uma pessoa abrir os pulmões, soltar a voz e emitir um som que não tem fim, cheio de alma e poderoso. E senti que não podia parar até que conseguisse fazê-lo. Nem sabia se seria capaz, mas nunca me passou pela cabeça desistir.”

Quando se fala em educar a voz, a escolha do verbo remete para o trabalho exaustivo que a inglesa levou a cabo a partir do momento em que decidiu que queria cantar as suas composições. A ideia não era soar simplesmente afinada ou demonstrar capacidade suficiente para interpretar um par de standards blues-jazz sem se espalhar vergonhosamente e fazer uma figura ridícula. Nesse período em que passava horas a conhecer, explorar e forçar o seu aparelho vocal tinha por modelos Édith Piaf e Nina Simone. Coisa pouca, portanto. Daí que quando, por fim, atingiu o nível mínimo que tinha definido para si mesma e arriscou mostrar em público as suas criações, as suas canções cruas, de parentesco fácil de estabelecer com a PJ Harvey de Dry e Rid of Me, a voz escutada por cima da aspereza da guitarra tomava caminhos de qualidade operática que acrescentavam um mistério e um encanto pouco vulgares no livro de estilo pop-rock.

E se foi esta história a render-lhe elogios desmesurados – como aquele que saltou da boca de Brian Eno: “É a melhor coisa a aparecer depois de Patti Smith” – e a fazer do álbum homónimo de 2011 uma das estreias de cantores-compositores mais memoráveis desde Grace, de Jeff Buckley – com este partilhava a tal mestria vocal inesperada que legitimava citar Debussy ou Ravel como influências sem provocar um ataque de riso –, aquilo que corria por debaixo da irresistível narrativa era a capacidade de alguém projectar a imagem de quem queria ser e tudo fazer para aproximar a realidade desse fito mais ou menos fantasioso, mais ou menos distante.

Há algo aqui que bate muito certo com a libertação que Hunter representa na discografia e na vida de Anna Calvi. Assumido como um álbum feminista e queer, desafiador de papéis de género, numa perspectiva mais universal, é também, em simultâneo, o resultado desse mesmo gesto de Calvi projectar quem quer ser e usar as canções para tentar atingir esse modelo que pendura à sua frente como objecto último. As canções de Hunter, de certa forma, avançam antes de Anna Calvi, são como uma candeia que ilumina o caminho e mantém sempre presente o destino para o qual corre a cada segundo.

“Penso que o propósito da arte é precisamente explorarmos e sermos uma versão de nós próprios que talvez sintamos que não podemos ser na vida real”, confessa ao Ípsilon, numa voz soprada, mal se fazendo ouvir, o contrário daquilo que imaginaríamos vindo de uma cantora que transpira confiança e assertividade em palco. O modelo, mais uma vez: a timidez que Calvi falha em ocultar numa entrevista não encontra fendas por onde se infiltrar nas muralhas de afirmação que são as suas canções. Não há qualquer vislumbre de insegurança em temas como Chain, Swimming pool ou Hunter – a voz rasga qualquer um dos instrumentais, no meio dos quais desponta um doseado virtuosismo na guitarra e os versos escancaram o seu desconforto em se ver metida num corpo definido por maiores ou menores doses de estrogénio. “I’ll be the girl you’ll be the girl / I’ll be the boy you’ll be the boy, I’ll be the girl” canta em Chain, tema que ch-ch-ch-ch-cheira a David Bowie em mais do que um aspecto (sendo a androginia um deles, como é óbvio, mas também a gaguez que aplica a cuspir a palavra ‘chain’ sobre aquele particular património melódico).

Anna Calvi acredita que “o único limite é a nossa imaginação” enquanto se vive dentro de uma canção. E ao dar crédito à sua imaginação, defende, tanto ela quanto quem a ouve transformará a verdade acerca de si. Uma maneira de contrariar um problema que, identifica, reside nesta “sociedade em que vivemos, muito centrada no homem, em que as mulheres são com muita frequência retratadas pelo olhar masculino, não conseguindo reflectir na nossa cultura as complexidades e as imperfeições femininas em toda a sua glória”.

Lugar de protagonista

As dez canções de Hunter – que poderemos escutar em concerto a 19 e 20 de Outubro, no Hard Club (Porto) e no Capitólio (Lisboa) – nascem da indisponibilidade de Anna Calvi se vergar perante o omnipresente olhar masculino. E, em conjunto, funcionam como uma seta desferida a essa ingerência na sua vida, recusando atribuir a um colectivo abstracto poder suficiente para puxar os cordelinhos daquilo que está certo ou errado nas suas escolhas. E é por isso que chama Hunter ao seu terceiro álbum – para deixar de se sentir perseguida, virou o jogo; em vez de caçada, tornou-se a caçadora. Mas esta não é uma caça sanguinolenta, com desejo de vingança ou de ferrar os dentes em quem sente como ameaça. A sua caça dirige-se a todo o tipo de experiência, é uma ferramenta para se retratar como “uma mulher que explora todo o seu ser e o seu prazer sem qualquer vergonha, sendo a protagonista da sua história e não se colocando na sombra de outros”.

Hunter é, por isso, a busca também por um lugar de liberdade. Um lugar em que, à boleia de uma enorme canção de rock pouco urgente, pedida de empréstimo à década de 80 (Don’t beat the girl out of my boy), Anna Calvi canta “Don’t beat the girl / out of my boy” e exige ser tudo quanto lhe apetecer num só corpo, sem ter de modelar-se a imperativos biológicos e a construções sociais daí decorrentes. É o segundo de dois temas (o primeiro é Hunter) em que a sua guitarra se deixa infectar pelo som lynchiano que Angelo Badalamenti firmou na banda sonora de Twin Peaks. Em comum com Lynch, diz a música, identifica um interesse claro em criar numa zona porosa e de fronteira “entre a fealdade e a beleza”.

Nunca antes Anna Calvi se tinha permitido ser tão directa nas suas canções. E essa é, na verdade, uma das forças maiores de Hunter: a distância entre música e vida encurta drasticamente, há menos segundos sentidos, vemos um decréscimo acentuado de qualquer névoa que pudesse instalar-se entre cada par de versos. Foi por isso que tardou em lançar um sucessor para First Breath (2013). Anna queria encontrar forma de ser mais directa, de juntar um grupo de temas que se sentisse capaz de defender com absoluta sanha. E para chegar até aqui acabaria por se revelar fundamental ter-se apaixonado e seguido a sua namorada para França. “Senti que enquanto estava a escrever sobre ser uma caçadora estava também a experimentá-lo na minha vida”, diz. “Estava a apaixonar-me e a explorar novas formas de ser feliz. Tinha mesmo de escrever sobre estas experiências porque estava a passar por elas. O disco e a minha vida pessoal estavam a acontecer em paralelo.”

Esse período que as duas passaram em Estrasburgo – mais tarde seguiram para Inglaterra – foi crucial para essa descoberta paralela. O facto de não conhecer ninguém na cidade francesa, confessa, permitiu-lhe “reflectir sobre quem era e quem queria ser” sem grandes constrangimentos. “Pude ser mais lúdica com a minha identidade, algo que não sei se poderia ter feito se tivesse ficado em Londres. Foi um período muito revelador e entusiasmante.” Nesse processo percebeu também que o álbum que teria pela frente, em consonância com o perfil de caçadora que idealizou, teria de ser “mais visceral, selvagem e cru”.

Essa intenção, em parte influenciada pela colaboração com David Byrne no EP Strange Weather (2014), pode-se descortinar na sua descrição daquilo que mais aprecia no ex-Talking Heads: ser destemido e manter uma qualidade clássica nas suas canções. Ou seja, mesmo quando aponta a ser visceral, selvagem e crua, Anna Calvi não consegue negar uma elegância que faz parte da sua natureza. “Tento também ser destemida, é verdade, e essa qualidade clássica pode ter que ver com o facto de não tentar emular o que é popular em determinado momento”, comenta. “Não tentei, certamente, fazer um disco que soasse a 2018 – o que quer que isso queira dizer.”

E isso é evidente quando, valendo-se da ajuda de Adrian Utley (Portishead) e Martyn Casey (Bad Seeds) – do primeiro quis aproveitar uma abordagem “orquestral mas sem usar instrumentos de orquestra”, do segundo tentou recolher o “seu baixo soulful” –, se atira à etérea e clássica Swimming pool ou à dramática e libidinosa Alpha. Inegociável na criação desta excelente dezena de canções, diz Anna Calvi, foi deixar que fosse sempre o instinto a prevalecer. Para que esse estado selvagem nunca acabasse domado e não cedesse à razão – uma outra forma de comprometer a liberdade.

Anna Calvi

Hunter

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